Em texto recente publicado n’O Público, o eurodeputado Paulo Rangel efe­tuou uma lúcida análise sobre o panorama dos principais partidos políticos portugueses face às próximas eleições para o Parlamento Europeu. Por razões óbvias, incluiu na sua análise o provável futuro partido liderado por Pedro Santana Lopes. Para comple­mentar a sua análise, Rangel teve o cuidado de enquadrar as posições desses mesmos partidos no quadro e no âmbito das famílias políticas europeias que integram e a que pertencem.

Regresso ao texto de Rangel porquanto o mesmo, introduzindo o conceito de regresso a um novo “neo-monteirismo” fez-me recordar um período que vivi bem de perto e com algum conhecimento direto de causa, uma vez que, ao longo de seis anos (1992-1998), acompanhei a liderança de Manuel Monteiro no CDS-PP como membro da sua Comissão Política Na­cional e, fruto do gosto e de escolhas pessoais, sempre prestei particular atenção à po­lítica europeia então protagonizada por aquela liderança.

Diga-se, em abono da ver­dade, que sempre me solidarizei com as opções europeias da direção polí­tica que inte­grei, pese embora – era sabido, aceite e respeitado pelos meus pares – sobre a mesma sempre preconizasse vias e caminhos mais ousados, opções mais comunitaris­tas e me­nos intergovernamen­talistas. Nas palavras simpáticas de um colega daquela Di­reção po­lítica, infelizmente já falecido, “eu era uma espécie de ‘perigoso federalista’ lá da casa”.

Era verdade; era assim mesmo. E era sinal de que, nesses tempos já longínquos, a plu­ralidade de opiniões, a diversidade de pontos de vista e o não unanimismo eram timbre de um coletivo em que ninguém era excluído por divergências de opinião e to­dos, cada um à sua maneira, con­tribuíamos para a formação da vontade desse mesmo coletivo, res­peitando sempre a vontade maioritariamente expressa. Inclusivamente no quadro de referendos partidários, onde cada um sempre pôde expor as suas opiniões livremente e sem quaisquer constrangimentos.

Essa particular situação que me coube viver dá-me a possibilidade, mas também o dis­tanciamento, de reconhecer que o agora chamado “neo-monteirismo” – originaria­mente muito tributá­rio das posições francesas de Philippe Séguin, Charles Pasqua e, até, Philippe de Villiers – era essencialmente uma postura “soberanista” que nada tinha a ver com as posturas nacionalistas, extre­mistas e radicais que, já existindo na altura de forma residual e embrionária, posteriormente come­çaram a ganhar o seu es­paço em diversos países europeus, cor­porizando uma estranha e espúria convergência entre os radicais de esquerda e os radi­cais de direita.

Em primeiro lugar, o “soberanismo monteirista” era profundamente sistémico. Não de­fendia a rutura do sistema europeu através da dissolução da União Eu­ropeia e reconhe­cia o seu papel histórico no esforço de pacificação e desenvolvimento da Europa do pós-guerra. Bem como a sua atuação indispensável para a afirmação da Europa da liberdade (estávamos nos tempos do Muro de Berlim, não o esqueçamos) face à Europa soviética que começava a desmoronar-se. A UE sempre foi vista como uma realidade a preservar e não como uma entidade a liquidar.

Em segundo lugar, nunca o “soberanismo monteirista” advogou a saída de Portugal da União Europeia. Esse dado fundamental viria a fazer toda a diferença relativamente a outras posturas nacionalistas que, posteriormente, começaram a ganhar corpo e forma. A pertença de Portugal à União fazia parte de um acervo que se deveria manter e cons­tituía uma das características que tipificavam o chamado arco da governação. A sua con­sagração constitucional nunca foi questionada nem discutida.

O mais longe onde se che­gou foi, num primeiro momento, aquando da criação da união económica e monetária, a defesa de que Portugal, à semelhança de outros Estados-membros da UE, não de­veria aderir à moeda única europeia sem a realização de um referendo nacional sobre o tema; e, num segundo momento, decidida essa adesão, a defesa de que o governo do Eng.º António Guterres e do Prof. Sousa Franco não de­ve­riam acei­tar o câmbio estabelecido para o euro face ao velho escudo, por se entender que o mesmo respondia mais aos interesses estrangeiros de quem pretendia beneficiar das potencialidades da nossa economia do que, propriamente, aos interesses nacionais.

Em terceiro lugar, face a algumas políticas concretas definidas pela União (pescas, agri­cultura, por exemplo) as reivindicações feitas à data eram mais dirigidas à forma como o governo português defendia (ou não) os interesses nacionais em Bruxelas do que, pro­priamente, à forma como a Comissão Europeia, presa aos interesses de Estados mais fortes, as apresentava e as defendia. O tempo, curiosamente, esse mestre indesmentí­vel, acabaria por confirmar a assertividade e o bem-fundado de parte significativa das críticas então feitas. Um exemplo acabado de ter tido razão antes do tempo (coisa que, em política, não costuma pagar nem render votos).

Em quarto lugar, mais importante que tudo – as teses soberanistas constituíram, durante muito tempo, um travão ao nacionalismo e aos extremismos de esquerda e de direita. A existência deste tipo de posturas so­beranistas garantiu que, na Europa do virar do século, os debates que eram travados fossem debates tidos dentro do sistema e não fora dele. Eram debates entre quem não punha em causa o essencial, mas poderia divergir no particular ou no acessório. Eram debates sujeitos e submetidos ao contraditório democrático.

Infelizmente, com o de­curso do tempo, quando essas teses soberanistas desapareceram, começaram a surgir e a emergir, de forma reforçada, as posições nacionalistas extremistas. Posições com as quais nós, que somos europeístas, não temos qualquer possibilidade de dialogar, deba­ter ou discutir. Desde logo porque as teses nacionalistas se colocam fora do sistema. O seu desígnio passa pelo desaparecimento, puro e simples, da União Europeia – pressu­posto que nunca po­derá ser aceite por quem tem uma visão europeísta do próprio pro­jeto euro­peu.

Depois, porque a generalidade das teorias nacionalistas deixa muito a de­sejar em termos de diá­logo e debate democráticos. Não é possível, infelizmente, discutir demo­craticamente com muitos dos atores que, ultimamente, têm ganho poder e pro­tago­nismo na União Europeia. Com os soberanistas de então, esse debate sempre foi possível e, muitas vezes, foi feito.

Voltando ao texto de Paulo Rangel – se é verdade, como ele diagnostica e prevê, que quer o CDS quer o novo possível partido de Pedro Santana Lopes vão retornar à defesa de teses soberanistas (ou monteiristas, para parafrasearmos Paulo Rangel), trata-se de uma boa notícia desde logo para todos os que, não sendo soberanistas também não são nacionalistas e pugnam ativamente pelo europeísmo dos pais fundadores. É a garantia segura de que, dentro do sistema, voltaremos a ter parceiros de debate, inter­locutores de respeito e oponentes de nível. Será o debate que sairá beneficiado; e o pro­jeto europeu está tão necessitado dele como “de pão para a boca”. Bem-vindos sejam, pois, chamem-se eles “monteiristas” ou soberanistas. A Europa agradecer-lhes-á.