A existência de condições miseráveis, degradantes e desumanas para alojar trabalhadores não é, claro, um exclusivo de Portugal. Não é um exclusivo do sector agrícola, nem do Alentejo, nem sequer afeta apenas os trabalhadores imigrantes. Acontece há demasiado tempo, em muitas geografias, e afeta milhões de pessoas. É essa a triste verdade.

É importante ter essa consciência da realidade global, mas ela não pode servir para minimizar o que está acontecer aqui e agora. Mais do que isso, não pode servir para justificar que foi preciso vir uma pandemia e uma crise sanitária para chamar a atenção para o facto de centenas de trabalhadores agrícolas em Odemira, a maioria do subcontinente indiano, estarem a viver em condições que o Observatório dos Direitos Humanos considera, e com razão, que envergonham o Estado.

Ficamos todos envergonhados pelas imagens que vimos, porque o Estado somos todos nós. Mas, na prática, só alguns é que conduzem o Estado, e esses decidiram durante anos enterrar a cabeça na areia e ignorar este tipo de problemas, que incluem também os flagelos do tráfico de seres humanos e da escravidão laboral.

Podemos culpar pelo meio os traficantes, os agentes, os empregadores e outros, mas a atividade deles só se desenrola num vazio de controlo pelas autoridades, nacionais e locais, políticas e policiais.

O sistema falhou, não garantiu as condições mínimas e depois reagiu de forma tardia e atabalhoada. Basta olhar para as reações das três principais figuras da política portuguesa: Presidente, primeiro-ministro e líder da oposição.

Marcelo Rebelo de Sousa, na terça-feira, pediu “relatórios” sobre a situação laboral nas estufas e, no dia seguinte, veio defender uma investigação. Disse, e bem, que não podemos explorar a mão de obra imigrante, mas perdeu-se numa extemporânea crítica aos que não querem imigrantes em território nacional.

Rui Rio concordou que Portugal tem razões para se envergonhar, mas ao estranhar a existência de uma investigação que dura há mais de dois anos, pois o caso estava à vista de todos, leva-nos a questionar porque é que o PSD não fez nada antes e só agora veio criticar a atuação do Governo.

António Costa, que tem falado pouco sobre o assunto, reconheceu situações de insalubridade habitacional inadmissível, delegando a condução do processo em Eduardo Cabrita.

O ministro da Administração Interna, principal alvo das críticas de Rui Rio, veio dizer que a prioridade está na saúde pública e que os problemas de habitação e do modelo económico da região “não serão, de certeza, resolvidos em uma ou duas semanas”, demonstrando novamente a falta de sensibilidade que marcou os seus discursos sobre o caso Ihor Homenyuk, mais uma polémica à qual sobreviveu milagrosamente.

Eduardo Cabrita acrescentou ainda algumas palavras vagas sobre medidas preventivas, mas o foco do Governo tem estado na resolução imediata e não na prevenção. A requisição temporária do eco-resort Zmar era provavelmente a única alternativa para o Governo resolver o problema sanitário.

Ninguém gosta de ser expropriado, nem que seja de forma temporária, portanto, era previsível que uma polémica nascesse dentro de outra polémica, para mais exacerbada pelo recurso ao aparato policial a meio da noite.

Convém lembrar, no entanto, como fez Cabrita, que se trata de um parque de campismo em situação de insolvência, em que o Estado é o maior credor, e não de residências privadas ocupadas.

A polémica em torno do Zmar não deve, porém, mascarar a questão de fundo. O Estado não agiu a tempo para prevenir uma situação vergonhosa. E se é verdade que tudo o que disse o triunvirato ‘Presidente, Governo e Oposição’ estava (quase) certo, também é verdade que foi ‘too little, too late’.