É óbvio e comumente aceite que os incumbentes no setor financeiro enfrentam grandes forças disruptivas de mercado e que o atual processo de transformação passa, pelo menos, por tornar as estruturas de custos mais eficientes e adotar uma abordagem centrada no cliente.

Rapidez, facilidade, instantaneidade, conveniência. O desenvolvimento da tecnologia noutras áreas da nossa vida foi de tal ordem que já não estamos dispostos a negociar esses termos com o nosso prestador de serviços financeiros. É desta adaptação a um cliente cada vez mais exigente que surge o chavão da digitalização.

Que todos os bancos estão cientes desta necessidade de mudança não questiono. Que a digitalização é um tópico na agenda não tenho dúvidas. Questiono sim se todos encaram este processo de transformação com uma visão suficientemente holística. E acredito que as organizações que forem capazes de ter a conversa mais séria sobre a transformação digital, ganharão vantagem.

Os desafios do setor na última década, especialmente na ressaca do pós crise 2008, exigiram o reforço dos rácios de capital, das políticas de concessão de crédito, dos modelos de imparidade, dos procedimentos de compliance e das obrigações de reporte. Apesar de desafiantes, estes temas são passíveis de ser endereçados com o talento e conjunto de competências que caracterizam o setor. E o tipo de pensamento que caracteriza estes temas é maioritariamente convergente, o tipo de inovação maioritariamente incremental, e os resultados mais fáceis de prever.

Os desafios da digitalização trazem um novo nível de ‘desconforto’ para cima da mesa. Refiro-me à integração de tecnologias como chatbots, voice-to-text, advanced analytics, machine learning, computer vision, etc. Refiro-me ao desenvolvimento de novas relações e parcerias, designadamente com as FinTech. Refiro-me à reflexão do próprio papel do banco numa realidade cuja confiança é traçada através de smart contracts em blockchain, e cujos serviços de pagamento estão agora mais democratizados devido ao open banking.

Todos estes temas requerem uma revisão dos processos, da organização da estrutura interna e um leque de competências radicalmente distinto daquele que caracteriza um banco tradicional. Até que se dê o reajuste do talento e das job descriptions, os agentes com capacidade de decisão são tipicamente os mesmos. Ora, na minha opinião, é necessário um grande grau de abertura e coragem para liderar uma discussão séria à volta de temas tão disruptivos como os mencionados. Haverá culturas organizacionais em que será difícil defender o conceito de “fail but fail fast”, nas quais o “safety first” está tão enraizado, e nas quais haverá maior resistência em abdicar do nível de controlo a que estão habituadas para usufruir de parcerias.

Enquanto o ‘digital’ for encarado como um projeto, com um head of designado e um orçamento alocado sabemos que o assunto ainda não foi levado suficientemente a sério. Porque o Chief Digital Officer (ou equivalente) não será suficiente para transformar a arquitetura legacy dos sistemas base de uma organização que cresceu à base do M&A. E mesmo que o pudesse fazer, qual o incentivo para levar essa transformação a cabo quando o risco é tão alto e o retorno imediato tão baixo? Mas sem um governance de dados que garanta estrutura, consolidação, integridade e recolha de informações valiosas ao negócio, como vão os bancos tirar real vantagem das potencialidades do data analytics ou do machine learning?

Inovar somente para surfar a onda do digital vai trazer mais custos que benefícios, já para não falar da frustração dos agentes de mudança ‘fictícios’. Antes de embarcar em iniciativas de transformação, as instituições devem avaliar e determinar a sua ambição com máxima honestidade, e enquanto resultado, devem surgir uma visão e uma estratégia claras. Se a ambição for grande, então todas as decisões e conversas subsequentes devem corroborar esse voto de coragem.

Parece óbvio, mas não é.