Ontem, o primeiro-ministro disse (sem se rir) que o país respira um clima de tranquilidade, as famílias e as empresas deixaram de viver na incerteza de saber se acordavam a ouvir na rádio que iam cortar mais um salário”. Como disse? Clima de tranquilidade? Fosse a bravata proferida no habitual tom faceto com que o chefe do Governo costuma responder aos jornalistas, a coisa passava. Mas passava mal, porque já não há paciência para tanto desplante, mas passava.

Acontece que no mesmíssimo dia (e quase à mesma hora) em que tais afirmações eram proferidas, a realidade entrava de roldão nas nossas casas pela divulgação de vários números: o peso da dívida pública sobre o PIB atingiu 133%, batendo mais um recorde e transformando-se na quinta mais alta do mundo e, ao mesmo tempo, os juros das obrigações portuguesas a 10 anos subiu para 3,9 % acabando ao fim do dia por ficar nos 3,71 %. Tudo números tranquilos, como está bem de ver.

Tranquilidade também na convocação de várias greves e manifestações, certamente comemorativas do primeiro aniversário do Governo. Ontem tropeçámos em várias, desde os técnicos de saúde aos bolseiros de doutoramento e pós doutoramento. E ele há lá gente mais tranquila do que aqueles que fazem da vida uma permanente procura da bolsa que não vem?

Tranquilo, super tranquilo mesmo, o exercício do poder por vários ministros e secretários de Estado, amputados de esferas significativas das suas áreas de intervenção, minados que se encontram por conflitos de interesses e trapalhadas futebolísticas.

Tranquilo o modo como o Estado assume uma dívida pornográfica da Carris, sem que uma palavra seja dita sobre responsabilidades presentes ou passadas, e como, do mesmo passo, decide integrar dezenas de milhares de novos funcionários no Estado, sem explicar se são ou não necessários e fazendo tábua rasa do esforço de redução de efectivos que poucos recusam.

Tranquila, a concluir, a novela da Caixa Geral dos Depósitos, com tudo o que a arte da comédia ensina: realidade, ficção, farsa, mentira e embuste. E, naturalmente, tranquilos todos os que se prestaram e continuam a prestar a essa encenação.

Resta dizer, ou melhor, diga-se mais uma vez, que a tranquilidade também passa por uma comunicação social (redes sociais incluídas) com a consciência muito pouco tranquila. Quer porque não fazem o trabalho de casa, as mais das vezes, quer porque inventaram a “genialidade política ” do Chefe do Governo.

Vivemos tempos confusos em que poucos querem ver o “óbvio ululante” como escrevia Nelson Rodrigues. De um lado temos uma comunicação social dominada “pelos idiotas da objectividade”, do outro um primeiro-ministro rodeado da “horda bestial dos admiradores”. Tranquilos…

O autor escreve segundo a antiga ortografia.