Diz-se que qualquer ser humano sob pressão violenta e continuada poderá explodir a determinado ponto. O ódio que tomou conta da cena política e social no Ocidente não encontrou na resposta democrática a válvula de escape suficiente para o caudal de afronta em presença.

A política actual do ódio está em curso há muitas décadas, mais concretamente, desde Maio de 1968. O eufemismo encontrado para o ódio foi a célebre fractura. De repente, um movimento internacional altamente militante, fundado nos diferentes radicalismos de esquerda, mobilizou-se para impor ao mundo a sua agenda dita fracturante. Por fracturante, significava-se, e ainda hoje se significa, desconstruir e arrasar o modelo de sociedade do Ocidente, erigindo uma nova sociedade auto-policiada e intransigente sob os auspícios do que se viria a designar como politicamente correcto.

Os cenários imaginados por Bradburry e Orwell encontraram uma materialização tão rápida quanto avassaladora. O embuste foi sempre uma farsa de progresso e a normalização da anormalidade repetida, confundindo a nova legalidade com a justiça, sepultando a ética com sete palmos bem medidos de terra pesada.

O caderno base desta internacional fracturante incluiu sempre o aborto, o casamento gay, a adopção gay e a eutanásia. Mais tarde, por via da consolidação dos anteriores, afirmou a ditadura da ideologia de género. Entendamo-nos, nunca esteve em causa a preocupação com a mulher vulnerável, com o direito de cada um a viver tranquilo com a sua orientação sexual, com a felicidade das crianças privadas de família ou com a dignidade na morte.

Não, o que esteve sempre em causa foi a destruição pela base do princípio da inviolabilidade da vida humana e, consequentemente de valorização intrínseca do indivíduo, e o ataque metódico e corrosivo à ideia de família. Destruindo a ideia de indivíduo com valor intrínseco transcendente e de família como célula primeira da sociedade, a frente das esquerdas radicais unidas teria o caminho livre para impor o seu modelo social e forjar o seu homem novo, um ser amoral, programável e obediente. Foram longe demais e demasiadamente rápido.

A resposta das forças sociais e políticas tradicionais, manteve-se sempre dentro dos parâmetros da democracia, do bom senso, da ética e da razão. Os normais, entretanto transformados em reaccionários, acharam que o grande factor diferenciador era a legitimidade e a razoabilidade das suas posições. Responderam ao terrorismo verbal e de rua com argumentos de razão e de substância. Enfrentaram a destruição afirmando valores perenes. Combateram a violência insistindo na paz. Confrontaram a mentira invocando a verdade. Apostaram no plano das ideias e da tradição civilizacional contra o golpe em curso. Pode-se dizer que os resultados de quem esteve certo e agiu bem foram, na melhor das hipóteses, modestos.

É neste modesto desempenho do bem que surge a janela de oportunidade para a contra-revolução do ódio. É assim em todas as grandes crises políticas e sociais da história. O pioneiro foi Jean-Marie Le Pen, que procurou no passado a resposta para a opressão do presente. Cedo se viu que havia um desejo de resposta violenta, mas que Pétain e os seus dilectos não eram suficientes para os desafios do presente. O racismo e a xenofobia fariam parte da receita, mas era preciso muito mais, e um ar de actualidade ao produto, ou seja, no caso francês, o aparecimento de Marine Le Pen. A internacionalização do modelo, com pequenos ajustes locais, não tardaria. Hoje, com dinheiro a rodos e um roteiro internacional bem estruturado, estão ao nível da esquerda que os fez nascer.

Putin, com invejável sagacidade, viu nesta onda populista mais eficácia destrutiva do que a do arsenal militar soviético no seu conjunto. Bannon, com vocação indomável para príncipe das trevas, constituiu-se como o arqui-rival perfeito de Soros. As vitórias de Orbán, Trump e Bolsonaro fizeram o resto. Por todo o lado o sistema replica-se ancorado numa realidade alternativa, tal qual aquela que alimentou as esquerdas fracturantes.

A narrativa da seita dispensa a verdade e ergue-se apenas por oposição ao diferente. O marxismo agia cegamente por ódio ao explorador, o populismo move-se por ódio ao opressor politicamente correcto. Foi Hillary quem pôs lá Trump, foram Lula e Dilma que tornaram Bolsonaro inevitável, foram anos de opressão comunista que fizeram do Leste palco para diferentes populismos, é a calma passiva europeia que permite o avanço dos dois extremos.

Portugal chegou tarde a este quadro, mas chegou. Uma pequena legião de crédulos, cansados, inconformados e muitíssimos tresloucados e oportunistas, viram em Ventura uma novidade. Antigamente a moda de Paris chegava a Portugal com anos de atraso, foi igual com o Chega. Para muitos, a resposta racional, estruturada e responsável da direita do sistema não estava a ter ganhos concretos; havia que berrar muito e bem alto. Havia que chocar, descer ao mesmo nível e chafurdar na mesma lama.

Ventura apareceu disposto a tudo, em troca de apoio e fidelidade total. A seita avançou, com uma forte indução mística, deserções várias e todo o tipo de deserdados da sociedade. Ventura diz-se possuído pelo espírito dos maiores que atraiçoa, inspirado pela fé que trai em cada frase e visionário salvífico ancorado num neo-messianismo à moda de Loures.

A convenção de Évora foi a revelação do que vale esta montagem, uma ópera bufa numa sucessão apocalíptica de acontecimentos esquizofrénicos. A todos Ventura terá prometido mundos e fundos em contrapartida da militância, mas só alguns tiveram lugar na direcção; e foi o que se viu. Os fieis esqueceram-se que na seita ao lado também é prometido o céu em troca do dízimo, mas o céu não significa voar no jacto privado do Bispo Macedo. Lições da vida e da indesejada realidade.

No fim, resta-nos pensar o que queremos realmente. O caminho da realidade, o encontro ao centro onde se promovem compromissos, o preço a pagar pela democracia, a tensão dialética séria permanente, nunca serão de satisfação imediata, mas antes um caminho de sustentabilidade e da harmonia possível. Partir isto tudo até pode aliviar, mas paga-se muitíssimo mais caro.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.