O Presidente da República esteve bem ao vetar o diploma que determinava a comunicação automática à Autoridade Tributária (AT) das contas bancárias com saldos superiores a 50 mil euros. Há, contudo, algo de preocupante no primeiro e, logo, mais mediatizado argumento invocado por Marcelo: o da falta de oportunidade política. Com efeito, uma iniciativa politicamente inoportuna hoje pode deixar de o ser amanhã. E o passo que o Governo pretendeu dar com esta medida será sempre, hoje como amanhã, mais do que politicamente inoportuno, inconstitucional, ilegítimo e errado.

Primeiro, a medida transforma todos os cidadãos com saldos bancários superiores a 50 mil euros em suspeitos de fraude e evasão fiscal. Cria-se uma espécie de presunção de que ter rendimentos ou poupanças acima de determinado montante é suspeito e deve ser investigado. Sendo manifesta a falta de objetividade e de fundamento da regra, é difícil evitar argumentos de ordem ideológica, que são sempre indesejáveis, dado que contribuem para extremar o debate. Mas parece que se pretende mesmo consagrar a ideia de que os que têm mais dinheiro são bandidos ou, pelo menos, suspeitos de serem bandidos. E é difícil não questionar se isto não resultará do tal desconforto com o sistema capitalista que alguns deputados que apoiam o Governo têm revelado possuir.

Mas, acima de tudo, a medida é, em si mesma, uma injustificável ingerência no direito à reserva da vida privada. Com a crescente desmaterialização do dinheiro, a nossa vida processa-se cada vez mais de forma eletrónica. Quase tudo o que fazemos passa pelo banco e fica registado. Daí que o sigilo bancário seja, hoje em dia, muito mais do que antigamente, um garante de que a nossa intimidade é preservada. Que alguns contribuintes prescindam voluntariamente de parte desta reserva aderindo ao e-fatura e a outros programas que os levam a partilhar a sua vida com a AT, é uma escolha, consciente ou não, de cada um. Ser o Estado a impor esta devassa a cidadãos que têm maiores rendimentos ou, simplesmente, maiores poupanças sem que exista qualquer suspeita sobre os mesmos, é inaceitável num Estado de Direito democrático.

Não se trata do “quem não deve não teme”, como sugeriram os defensores da medida. Se fosse esse ponto, qual seria o próximo passo? Permitir à AT realizar, a título preventivo, escutas telefónicas e outras ingerências nas comunicações privadas lembrando que, se for um contribuinte cumpridor, nada tem a temer. Este desprezo pela privacidade, que é também desprezo pela liberdade, é preocupante e ninguém parece estar a dar-lhe a devida atenção.

Por fim, a medida em causa é obviamente errada e contrária àquilo de que o sistema financeiro precisa neste momento, dado que coloca depositantes, aforradores e bancos a desconfiar uns dos outros e introduz, na economia, um fator de perturbação desnecessário. Marcelo salientou sobretudo estes fatores ao vetar o diploma. E apenas nesta perspetiva se compreende que tenha colocado a discussão no plano de falta de oportunidade. É verdade que noutro contexto, de uma menor instabilidade do sistema financeiro, uma medida desta natureza poderia ter um impacto mais comedido e, logo, ser menos inoportuna. Mas, mesmo aí, não deixariam de subsistir inúmeras e muito importantes razões para vetar a medida. E importa que isto não se perca de vista.