Mês de outubro, mês do Orçamento do Estado. Com ou sem Covid, o ritual anual das discussões repete-se: o valor dos aumentos (ou não aumentos) da função pública, quais os benefícios fiscais de que as empresas irão beneficiar, quais os valores das previsões macroeconómicas (que todos discretamente sabem que não se irão verificar) e o pingue-pongue de declarações entre líderes partidários vai-se sucedendo até à (eventual) aprovação.
Mais um ano passou, e mesmo face a uma pandemia mundial, o momento legislativo mais impactante promete apenas prolongar o “business as usual” do lucro e deixar como subalterna a crise climática.
As alterações climáticas surgem como assunto na secção do Ambiente de Ação Climática, na qual a neutralidade carbónica é apontada para a tardia data de 2050, e, mesmo para alcançá-la, os esforços não parecem promissores. A despesa efetiva para o ministério responsável representa menos de 2% do total do Orçamento do Estado. Certamente uma quantia tímida tendo em conta a urgência de uma transição energética.
Das iniciativas existentes destaca-se a dos transportes, com a aposta marginal em iniciativas de expansão do transporte ferroviário nas zonas metropolitanas de Lisboa e do Porto, com um total de 816 milhões de euros para o ano de 2021. Após décadas de incúria do setor ferroviário, tudo o que o Governo consegue apresentar são expansões nas zonas metropolitanas, paradas as expansões fora destas.
O mais recente anúncio por via da imprensa da alta velocidade entre o Porto e Lisboa poderia ser animador, mas a não referência a este em qualquer linha do Orçamento do Estado junta-se a ser exatamente o mesmo anúncio feito há 21 anos, deixando dúvidas quanto à seriedade deste projeto.
A própria prioridade de estabelecer a alta velocidade entre Porto e Lisboa deixa dúvidas, sendo uma ligação decentemente servida em relação ao panorama geral do país. Casos como a linha do Oeste, estagnados, irregulares e por eletrificar são o reflexo da política de negligência de transportes que marcou Portugal nas últimas décadas, que deixa a desejar nas grandes metrópoles do litoral e é sempre a descer até ao interior pauperizado.
E sobre ligações internacionais, como por exemplo a ligação entre Lisboa e Madrid, recentemente interrompida? Pouco antes da apresentação do Orçamento do Estado, a ministra da Coesão Territorial declarou que Lisboa e Madrid já estão bem servidas com uma ligação por avião, não necessitando da ligação por comboio. E o transporte aéreo não é esquecido, com mais 500 milhões para a TAP, a somar aos anteriores 1.200 milhões. Assim, qual a neutralidade carbónica que o Governo pretende, dada a explícita preferência pelo transporte aéreo, o modo de transporte emissor de gases com efeito de estufa por excelência?
O Orçamento discute o abandono do carvão como fonte de produção de energia – uma condição necessária para a transição energética, no entanto não uma condição suficiente. A substituição deste por gás fóssil é para onde se deslocam as maiores questões, e a apresentação do Orçamento do Estado expressa claramente a aposta na capacitação do Porto de Sines para receber mais gás fóssil liquefeito, proveniente do fracking dos Estados Unidos.
Ficam desfeitas as dúvidas sobre as intenções do Governo de mascarar uma mudança do mix de combustíveis fósseis como parte da transição energética. Para os menos convencidos, o recente recorde a dia 16 de outubro de consumo de gás fóssil para o abastecimento das centrais termoelétricas pode ajudar a esclarecer as dúvidas.
Com o encerramento das centrais a carvão de Sines e do Pêgo, a resposta teria que ser uma capacitação drástica da produção de energias renováveis, mas tudo o que o Orçamento aponta são acréscimos menores na produção via energia solar e a intenção de prosseguir com a agenda do hidrogénio, com a única garantia de que esta última será entregue a negócios privados. Ainda sem produzir solar suficiente para o sistema elétrico, já só deliram em exportá-lo sob a forma de hidrogénio.
Entretanto, o silêncio sobre a situação dos trabalhadores das indústrias poluentes mantém-se, sendo consistente com o resto da política social do Governo: quem trabalha que espere que pingue alguma coisa das empresas.
Este é o Orçamento do Estado que se agarra à esperança de que, quando acabar o confinamento, o sistema ainda se encontre mais ou menos intacto, para poder ser entregue o desenho da retoma do aparelho produtivo aos planos do barão do petróleo – entretanto nomeado paraministro – António Costa Silva.
Depois de ver frustradas as suas esperanças de furar Portugal em busca de petróleo, o paraministro vira-se agora para a mineração desenfreada sob o álibi do lítio. O grande objetivo está mais do que explícito no Orçamento do Estado: lançar o concurso público para a criação do cluster da mineração em 2021. A intenção de ter “a mitigação de danos ambientais e a reabilitação ambiental e paisagística” supostamente servirá como atenuante para o desastre que a febre mineira representa.
No seu todo é um Orçamento do Estado para resgatar a velha economia fóssil da exploração a que estamos habituados, sem resolver as crises, quer a social despontada pela situação pandémica, quer a climática que se agiganta sobre as nossas cabeças. Uma agenda que atenda às verdadeiras necessidades das pessoas e não dos negócios é deixada para trás.