Desde cedo, somos ensinados sobre os opostos, os antónimos, os contrários. Formamos o nosso pensamento lógico com base na distinção entre o positivo e o negativo, o bom e o mau. Esta formatação que chega cedo ao pensamento das crianças para as fazer entender o mundo, leva a que pela vida fora esta dialética seja repetida para todos os aspetos da vida diária.

Não existe, sobretudo, nas culturas ditas ocidentais, cujo berço ainda é o Mediterrâneo, com destaque para a cultura greco-romana, que foi sendo reinterpretada e transformada, uma outra forma de ver o mundo. Contudo, esta forma de pensamento e de sistematização também apresenta as suas limitações, das quais devemos estar conscientes.

Assim, podemos assumir que esta dicotomia entre lados faz parte de uma sistematização que é muito cara ao pensamento ocidental. Nesse sentido, é normal que tudo funcione por oposição, incluindo na Natureza e na sociedade humana. Deste modo se criou a oposição mulher/homem, identificando caraterísticas físicas, intelectuais e psicológicas precisas a cada um dos elementos do binómio e cristalizando-as na sociedade.

Entre turbulências e desassossegos

No mês em que se celebra a mulher, data criada a partir de uma série de eventos funestos que vitimizaram mulheres que lutavam por melhores condições de trabalho nos Estados Unidos da América, mas após os quais a Internacional Socialista nunca mais deixaria de assinalar este dia. A data acabou por ser reconhecida em vários países do mundo e as Nações Unidas tornarão a data internacional em 1975.

A história deste outro lado do mundo, as mulheres que entram na vida social e económica de forma mais visível com a industrialização e com a urbanização da população, deve-se a importantes movimentos sociais e a muitas intelectuais que tornaram estes movimentos e aspirações em peças de arte e em participação política.

O desassossego provocado pelas sufragistas e, depois, pelas feministas fazia lembrar às várias sociedades que as mulheres eram tão parte do mundo como os homens e que a organização de raiz patriarcal as deixava de fora desse direito de participar na decisão dos seus destinos.

Porquê escrever sobre este tema num mundo em que em muitas geografias, mas longe de serem todas, se reconhece a igualdade perante a lei e o Estado? Porque a legislação ainda não entrou no quotidiano de todas as mulheres e, mais que isso, porque os novos populismos de extrema-direita parecem fazer esquecer estas conquistas, sobretudo quando ligadas a mulheres que não se incluem nas elites.

Voltam os sobressaltos em torno de questões como a saúde reprodutiva, mas também em relação ao papel da mulher enquanto indivíduo, membro da família e construtora societal e política da sua comunidade. A desigualdade de salários, de tempo e de esforço dedicado à família permanece.

A mulher, embora conquistando sucessivamente o espaço público, continua a ser a trave-mestra do espaço familiar e doméstico. Espera-se que seja afetuosa e aceite o sacrifício de liderar a “equipa” familiar, perdendo muitas vezes a sua identidade até no apelido, como ouvimos nos anúncios dos “Fernandes”, dos “Almeidas” e dos “Oliveiras”, certamente o apelido do “chefe de família” que legalmente deixou de existir.

Dois caminhos, uma convicção

Evoco duas obras, duas autoras (melhor, três) para melhor ilustrar o percurso de algumas conquistas das mulheres em Portugal e na Europa. A primeira, uma peça de teatro, a segunda, uma biografia.

Estreia no dia 14 de março a peça “Uma barragem contra o Pacífico”, da autoria de Marguerite Duras, numa encenação de Álvaro Correia, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada. A peça, encenada pela primeira vez em Portugal, é fruto de uma obra-prima da autora francesa e da sua experiência na então Indochina, desse pedaço de paraíso prometido aos europeus/franceses brancos, mas sem fortuna que aí imaginavam o seu futuro.

O cenário idílico é contrariado pelas dificuldades da subsistência nas teias de uma burocracia colonial, distante da metrópole, permeável à corrupção e ao favorecimento (ou desfavorecimento) e onde as mulheres viam o seu papel de subalternidade reforçado. Nesta peça, uma viúva luta contra a adversidade no seu papel de dupla exposição à arbitrariedade do regime colonial, o de colono pobre, mas acima de tudo o de mulher solitária com dois filhos a cargo.

Curiosamente, Marguerite Duras tem um envolvimento direto com a luta das mulheres portuguesas, tendo sido uma das intelectuais internacionais, a par de muitas outras de diversas nacionalidades, que acolheu o livro “As novas cartas portuguesas”, da autoria de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, as três Marias. Para além da receção deste livro, Duras militou contra a perseguição que as autoras sofriam então em Portugal.

Este livro constitui um marco na literatura portuguesa pela sua originalidade, mas também um evento único no movimento de defesa das mulheres em Portugal (não digo feminista, porque, de certa forma, Maria Velho da Costa se demarcaria dessa caracterização). Este livro é transformador, mas também revelador da mentalidade em Portugal.

Na sua magistral biografia de Maria Teresa Horta, Patrícia Reis relata o efeito deste livro na sociedade de então e na sua receção na posteridade. No livro “A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta”, editado em boa hora pela Contraponto, em 2024, a também escritora Patrícia Reis refere-se a uma obra quase escrita a quatro mãos, dada a estreita colaboração com a biografada.

Este livro é um relato poderoso da sociedade portuguesa, mas também da sua história literária do século XX e início do XXI. São oito décadas de encontros e desencontros, numa sociedade que parece evoluir lentamente, mas que depois desperta sobressaltada, contudo, de forma limitada para as mulheres.

O reconhecimento tardio da autora biografada, o peso do seu feminismo e do seu ativismo social e político demonstram como a mudança da situação da mulher em Portugal, e mesmo na Europa, é lenta e fruto de labor intensivo de mulheres que não baixaram os braços. Horta e Duras conheceram-se pessoalmente e apesar da diferença geracional são faces de uma mesma moeda, aquela que geralmente fica invisível e tem que ser atirada ao ar para se tornar visível.

Do outro lado

Horta e Duras estão do outro lado. Desse lado menos visível, mas que existe e reclama o seu reconhecimento. Em tempos obscuros, de extremismos e de parcos diálogos, é arriscado pensar-se que o trabalho destas mulheres que lutaram pelo reconhecimento dos direitos sociais e políticos de mais de metade da humanidade está terminado.

Celebrá-las e relembrá-las é também recordar que os equilíbrios são frágeis. Neste ano, em que Portugal perdeu Maria Teresa Horta, é um dever adicional reconhecer o seu papel nos ativismos social e político e na literatura em Portugal, apesar de ter ultrapassado fronteiras geográficas e linguísticas, e recordar que as batalhas pela igualdade nunca estão ganhas.