Ouvi há dias alguém dizer, em jeito de brincadeira, que “já faz falta uma aplicação, para sabermos que greve temos a cada dia”. Pois é… teria graça, se não fosse tão grave.
Há meses – muitos, mesmo – que a função pública, nos seus variados sectores, trabalha aos soluços. Seja na saúde, no ensino, nos transportes ou nos próprios serviços administrativos, as greves têm acontecido de forma consecutiva e, à vez, como se de um coreografado bailado se tratasse.
A mesma Função Pública que vive a partir dos impostos que – coerciva e exageradamente – os cidadãos portugueses pagam, com a contrapartida de ver assegurados – entre outros – os seus cuidados de saúde, a educação dos seus filhos ou a forma de se deslocarem (sendo que, nos transportes, ainda pagam os passes sociais…).
Não questiono aqui o mérito ou pertinência destes serviços que, pretendendo-se tendencialmente gratuitos raramente o são, e que invariavelmente empurram – quem pode – para a iniciativa privada. Deixo isso para outro texto.
Também não questiono aqui o impacto que estas greves têm na nossa economia, débil e sem rumo, fragilizada por dois anos de confinamentos e castigada com uma – nova – crise financeira global, que empurra grande parte das famílias para uma situação desesperante. Deixo também isso para um outro texto.
Mas não posso deixar de assinalar a enorme coincidência de timings. São, segundo os próprios, décadas de injustiças e atropelos aos seus direitos, com o deteriorar constante das condições de trabalho.
Não está – nem por um segundo – em causa o direito inalienável à greve. Nem tão pouco contesto qualquer uma destas queixas.
Mas se são décadas, já teriam estas “dores insuportáveis” em 2015, bem como nos 4 anos que se seguiram. Os mesmos da famosa Geringonça. Nessa altura não ocorreu a estes sindicatos parar o país? Ou impedir que o cidadão comum tivesse os seus cuidados de saúde assegurados? Ou deixar grande parte dos trabalhadores sem forma de chegar ao trabalho? Ou privar os nossos filhos de aprender?
Pois é, não ocorreu. Como não ocorreu organizar manifestações de 150 mil pessoas em Lisboa.
E a única diferença está na composição do Governo. É que em 2015 a esquerda radical passou a estar coligada com o poder. Deixou de estar em 2019, mas manteve a sua ligação à governação, viabilizando um Governo com um PS com minoria parlamentar. Mas, em 2021, perdeu qualquer poder de influência, com um resultado eleitoral desastroso, que brindou os socialistas com uma maioria absoluta. E, então, (re)começaram as greves.
Mas, apesar de tudo isto, quero acreditar que esta é apenas uma grande e infeliz coincidência; que são abrangidos alguns dos setores mais críticos e impactantes, porque calhou; que a intensidade, a cadência e a resiliência destas greves, ao longo de todos estes meses, são obra do acaso; que a perda de poder da esquerda radical nada tem a ver com toda esta confluência; que a mesma não tem sobre os principais sindicatos um poder absoluto, ou sobre o povo português um instinto vingativo; que não estamos reféns de uma minoria com laivos de totalitarismo e instintos castigadores.
Quero acreditar que este mar de greves, em todos estes sectores vitais, não venha a banalizar o impacto das mesmas, criando uma espécie de letargia política, com anuência social.
Quero acreditar que, por fim, tudo não acabe por se revelar um saco cheio de nada, entre trocas de favores, acordos em surdina e danças de cadeiras; quero acreditar que os danos irreversíveis infligidos a todos nós, não se dissiparão com uma grande operação concertada de cosmética, onde todas as partes possam reclamar uma vitória. E quero acreditar porque, garantidamente, o contrário é mau e não faz qualquer falta a Portugal.
O direito de acesso a serviços tão básicos como uma consulta médica, a utilização de um transporte público ou um professor para os nossos filhos, não podem estar reféns de cíclicas oscilações nos alinhamentos políticos, entre fações que se opõem por conveniência, mas que se justapõem por convicção, refletidas em sindicatos com posicionamentos arrogantes e intransigentes, comportando-se como “os donos d’isto tudo”. Ou seremos o país dos sindicatos, e de quem neles manda?