Quando Fletcher Christian amotinou o “The Bounty”, no longínquo ano de 1789, estava a pôr em causa, na época em que a modernidade pura assolava a Europa e a América, o poder vetusto e autocrático de William Blight, símbolo da prepotência e dos hábitos repetidos do Império. Mais de dois séculos depois, um homem das Américas – que acabava de dar um contributo maior para a união do Continente – começava a afundar um barco cheio de caruncho, que dá pelo nome de Cúria Romana, o poder secular do Estado de Deus. Esse homem é argentino, baptizou-se de Jorge Mario, e é mais conhecido por Papa Francisco.
É de um tradicionalista que se trata, mas de um tão específico que deixa muito tonto de cabeça à roda e de livros sem resposta. Membro da “Comunhão e Libertação”, um movimento central da Igreja pósconcílio, nem muito à esquerda nem à direita – para usar uma terminologia que dificilmente se adapta ao Cristianismo –, Francisco é adepto do rito tridentino ou tradicional, que o aproxima de Marcel Lefèbvre. E, contudo, de conservador pouco tem.
Quando os cardeais esperavam uma banal mensagem de boas-festas, Francisco aproveitou para lhes dar uma surra valente. Falou em corrupção, não de uma forma genérica e fenomenológica, mas pondo em causa precisamente a sua existência concreta e individual. Foi além de uma abordagem crítica, de uma visão moralmente neutra. E enumerou 15 “pecados” do Governo da Santa Sé.
“Sentir-se imortal”, “viver em círculo fechado”, “petrificar-se mental e espiritualmente”, “não coordenar acções de uma máquina rotineira”, “sofrer de alzheimer espiritual”, “rivalidade”, 2esquizofrenia existencial”, “inveja”, “maledicência e boatos”… Os cardeais ouviam e baixavam a cabeça – era com eles que Francisco falava. “Vítimas de carreirismo”, “exibicionismo” e ‘cobardia’ foi a estocada final.
Mas não foi quieto no seu pedestal que o Papa conseguiu, dias antes, o que muitos tentaram. Foi afrontando poderes e abrindo mentes que provocou o diálogo entre Barack Obama e Raúl Castro, representantes de países inimigos, como ele americanos, como ele produtos de um Novo Mundo nem sempre linear na sua aproximação à razão.
“Todos somos americanos”, disse Obama – em espanhol – quando anunciou ao mundo o princípio do fim da guerra fria que os EUA mantêm com Cuba há mais de 50 anos. E que toda a gente sabe foi, em grande parte, obra do mediador político que é o mediador de Cristo – um padre de Buenos Aires que, numa entrevista recente, respondendo ao pedido de como gostaria de ser lembrado pela História, pensou um pouco e disse apenas: “um bom tipo”.
A revolução/revolta de Jorge Bergoglio, que está a fazer da maior ilha das Caraíbas não já um espólio de piratas, chamem-se eles Edward Teach, “o Barba Rossa”, Fulgêncio Baptista, o ditador de casino, ou Fidel Castro, o comunista “a contrario sensu”, é a de um homem que usa o poder que tem para estabelecer consensos, aberturas, obra do Evangelho no mais puro sentido terreno. O Papa das Caraíbas é um corsário ao serviço de Cristo.
Mas há Barba Rossa no horizonte, esse mesmo a que por obra e arte chamaram “o Diabo”. Assassino, pedófilo, prepotente e egoísta, assolou os mares das Caraíbas durante duas décadas, cerca de 70 anos antes de Christian ter virado a Bounty do avesso. Os novos “piratas” chamam-se congressistas, vivem em Washington, e querem impedir por todos os meios que um dos povos mais avançados do mundo – os cubanos – saia da barbárie económica em que o atolaram os seus dirigentes e vários presidentes dos EUA.
Ao melhor estilo da Fox News, John Boehner, o chefe republicano do Congresso, afirmou, após os discursos de Obama, Castro e do Papa – a propósito da nova abertura a Cuba – que o lance da Casa Branca iria “encorajar todos os países que apoiam o terrorismo”. E um qualquer de que não recordo o nome, mas que é putativo candidato à presidência em 2016, disse que o presidente “cedeu tudo mas obteve pouco”. Está instalada a guerrilha para tentar fazer letra morta dos esforços do Papa e do bom entendimento de Obama e Castro.
Não sejamos ingénuos. Depois da derrota para os republicanos, Obama joga cartas arriscadas para pôr a nu as ideias patéticas dos piores “reaças” da capital da União. E Castro, perdido o petróleo da Venezuela – a braços com uma crise sem precedentes –, precisa de abertura comercial para desenvolver a economia do país. Até que ponto o homem das “pampas” pode intervir, fica já para os próximos episódios. Talvez
Jack Sparrow possa quebrar a maldição… A estrear em breve, numa realidade bem perto de nós.
Márcio Alves Candoso
(O autor năo segue o novo acordo ortográfico)