Sobre a greve dos motoristas de pesados, em geral, e dos de matérias perigosas, em particular, abstenho-me de discorrer sobre a gestão política do governo, dos empregadores e dos sindicatos, ou de qualificar as actuações de uns ou de outros. Vários comentadores já o fizeram.
Interessa-me, sobretudo, o quadro conceptual e de princípios gerais. Esta greve veio demonstrar, à sociedade, que os portugueses não gostam das greves feitas pelos outros. Não gostamos das greves na perspectiva de consumidores ou de utentes. Não gostamos de ficar sem combustível, de ter consultas, exames e cirurgias canceladas, escolas sem avaliações ou aulas. Regra geral, prevalece a lógica do consumidor em detrimento da do cidadão ou do trabalhador.
Não gostamos de greves, grevistas ou sindicalistas. Mesmo que todos nós, ou quase, sejamos também trabalhadores. Do que gostamos é de homens providenciais, de pulso forte, que metam ordem na casa.
Acresce que largas franjas da sociedade também não gostam dos que pensam diferente, dos que falam ou escrevem diferente, dos que gostam de coisas diferentes ou dos que amam de forma diferente. Como se a diferença de opinião ou a liberdade de pensamento fossem crimes de lesa-majestade, perigosos sabotadores da ordem estabelecida. Sindicatos, igrejas, partidos políticos, associações, quando saem de um registo conformista e acomodatício são alvo de desdém ou de hostilidade, mais ou menos encoberta.
E porque não gostamos de nada disso, porque temos taxas de sindicalização baixas, porque protestamos pouco, cada vez temos mais e mais um modelo de sociedade que paga salários medíocres, que condena os jovens com curso superior ao desemprego ou à emigração, e os pais destes jovens qualificados, ao desemprego estrutural, se após os 45 anos, aquando de uma qualquer ‘reestruturação’ empresarial perderem o emprego.
Por causa da nossa anomia social, temos uma sociedade que remunera cada vez mais o capital e cada menos o trabalho e os trabalhadores. Parece que há quem queira atribuir ao capital todos os frutos da produtividade e do aumento dos resultados.
O trabalho é um direito fundamental, para a dignidade do ser humano e para a célula familiar. Porque o ser humano deve ser a medida e o fim de qualquer sociedade, o trabalho e a sua dignidade está primeiro do que qualquer outro factor de produção.
Quando vejo trabalhadores a poderem ser obrigados a ter jornadas de trabalho diárias de 13 horas, sejam camionistas ou bancários, fico a pensar que política de trabalho é esta que penaliza as famílias e que reduz drasticamente o tempo dedicado ao descanso.
Dito isto tudo, a greve é uma forma limite de luta, ainda que necessária, quando todas as outras não foram capazes de produzir os efeitos desejados pelos trabalhadores (também eles consumidores, utentes, contribuintes), nomeadamente os seus direitos e justas reivindicações. Porém, a greve é inaceitável quando acompanhada de violência, ou prosseguindo objectivos alheios ao trabalho e às condições dos trabalhadores. Como meio extremo que é, a greve deve ser proporcional, respeitando, na medida o possível, os grupos mais frágeis por ela potencialmente afectados.
É legítimo que sejam estabelecidos serviços mínimos, mas não devem nunca ser definidos com o intuito apenas de malograr os intentos dos trabalhadores em greve. E, claro, não gosto especialmente de requisições civis, nem de militares, a executarem o trabalho de quem está em greve. Uma sociedade que quer ser pluralista e autónoma, que tem memória e estuda o seu passado, não pode deixar de se sentir incomodada ao ver estas linhas a serem ultrapassadas.
Por tudo isto, um abraço de solidariedade pessoal para todos aqueles que lutam por jornadas de trabalho não esclavagistas, por salários declarados que correspondem à realidade, por descontos para a Segurança Social pela totalidade da sua remuneração, por tempos de descanso e por condições salariais que permitam que os trabalhadores usufruam de uma fatia justa dos rendimentos gerados. E que por isto, por tudo isto, no limite e apenas no limite, fazem greve.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.