Eram quase duas da manhã, na madrugada de 14 de dezembro de 2017, quando os representantes da presidência estónia do Conselho da União Europeia voltaram à sala em Estrasburgo onde decorria o trílogo negocial (envolvendo o Conselho, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu) sobre a 5ª Diretiva Contra o Branqueamento de Capitais e o Financiamento do Terrorismo. Vieram anunciar às equipas do Parlamento Europeu (PE) e da Comissão Europeia (CE) que, finalmente, uma maioria dos governos dos Estados-membros (sobretudo falando através dos ministérios das Finanças) dava luz verde ao texto a que tínhamos chegado, ali, no trílogo. Momentos houve na negociação em que desesperei e tweetei para o exterior: “Mas os governos europeus querem mesmo combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo? Mais parecem empenhados em facilitá-lo!”
A 5ª Directiva era urgente: visava encontrar mecanismos para obviar aos esquemas de financiamento do terrorismo de que se haviam valido os atacantes do Bataclan e do Stade de France, em Paris, a 13 de novembro de 2015. O texto acordado em trílogo, com base numa proposta da CE depois emendada pelo PE, resultava de sete meses de negociações, prolongadas pela insistência de uma frente de representantes mais progressistas (onde me incluía, como relatora-sombra pelos Socialistas & Democratas) que recusava endossar um acordo político sem um compromisso satisfatório quanto às principais exigências do PE.
Face ao que tínhamos visto do posicionamento dos governos na negociação da 4ª Directiva (atualmente em vigor) e ao que aprendêramos entretanto graças aos escândalos Swissleaks, Luxleaks, Panama Papers, etc., queríamos lograr um substancial reforço dos mecanismos de controlo e transparência no setor empresarial e financeiro. Queríamos garantia de acesso público aos registos de beneficiários efetivos de empresas na União Europeia (UE), visando acabar com a opacidade das companhias de fachada utilizadas para fugir ao fisco e lavar dinheiro. Queríamos acesso público aos beneficiários das trusts (só em parte conseguimos, pois os governos restringiram-no a quem invoque um interesse legítimo no acesso à informação). Queríamos deveres de due diligence reforçada para esquemas de alto risco como golden visa e freeports (ficaram só para as “entidades obrigadas” do setor privado, os governos recusaram que se explicitasse a aplicação às próprias administrações públicas).
Estes são exemplos do trabalho e da perseverança do PE para determinar uma mudança decisiva no paradigma europeu e mundial de combate aos crimes de “colarinho branco”, incluindo a lavagem de dinheiro associado à corrupção, a todo o tipo de criminalidade organizada (da droga ao tráfico de armas e de seres humanos), à fuga ao fisco e à injustiça fiscal.
“Aproximadamente 82% do dinheiro gerado em 2017 foi parar ao bolso de apenas 1% da população global. Não admira, assim, que os cidadãos estejam descrentes nos governos, nas instituições europeias, nos partidos e representantes políticos”.
O PE procurou agir face ao aumento escandaloso das desigualdades económicas e sociais ao nível global, progressivo nos últimos 30 anos, em resultado da desregulação neo-liberal económica e financeira e da criminalidade organizada que se aproveita tanto da desregulação, como da digitalização de todas as esferas de atividade. Procurou reagir contra a anuência das elites políticas à proliferação de esquemas de planeamento para a evasão fiscal e criminalidade financeira por parte dos mais ricos e das grandes empresas multinacionais. Contra um processo assente na criação, na Europa e fora dela, de paraísos fiscais – jurisdições especializadas no sigilo e na concorrência fiscal, que arrastam os Estados numa corrida para o fundo e lhes tornam insustentável financiar serviços públicos básicos e garantir um mínimo de justiça social.
Segundo um relatório publicado pela organização não governamental Oxfam em 22 de janeiro de 2018, aproximadamente 82% do dinheiro gerado em 2017 foi parar ao bolso de apenas 1% da população global. Não admira, assim, que os cidadãos estejam descrentes nos governos, nas instituições europeias, nos partidos e representantes políticos; não admira que as democracias europeias estejam a ser assaltadas pela ascensão galopante de forças populistas, xenófobas e anti-UE.
Este não é um problema exclusivamente europeu, mas a Europa tem uma especial responsabilidade, até porque entre os principais paraísos fiscais do mundo estão alguns dos seus Estados-membros (casos do Luxemburgo, Holanda, Irlanda, Malta e Chipre, por exemplo), ou integrados no seu Mercado Interno, como a Suíça. Um problema que se foi agravando em resultado da regra de unanimidade entre os Estados-membros, inscrita nos Tratados, para tomadas de decisão em todas as matérias fiscais. A ilusão de preservar uma “soberania nacional fiscal” obstaculizou a necessária harmonização das regras de tributação das empresas que o Mercado Interno exige: assim se instigou o dumping fiscal entre Estados-membros, assim se desvirtuou a concorrência no Mercado Interno, assim se acentuou a discriminação entre grandes empresas (com recursos para recorrer a paraísos fiscais e esquemas ditos de pleaneamento ou “optimização” fiscal) e as pequenas e médias empresas – estas, segundo a CE, pagam em média mais 30 por cento em impostos!
O paradigma começou a mudar a partir de 2013/14, quando vieram a ser conhecidas a escala e a perversidade dos esquemas de branqueamento de capitais e de evasão fiscal na Europa, graças às revelações Luxleaks, Panama Papers e depois, em 2017, os Paradise Papers (as revelações prosseguem, recentemente com o caso Danske Bank/ABLV e, ainda na semana passada, com o caso CumEx na Alemanha). O PE tomou logo a iniciativa política, constituindo a Comissão Especial “TAXE”, por pressão da referida frente de forças progressistas, iniciando um processo de escrutínio político e de apresentação de propostas em matéria de fiscalidade e de combate ao crime financeiro sem precedentes na história da UE. Foi sucedida pelas comissões de inquérito “TAX2” (2015), “PANA” (2016) e “TAX3” (2018).
Foi o trabalho destas comissões parlamentares que respaldou a atuação da CE na aplicação de multas pesadíssimas a grandes multinacionais (Apple, Starbucks, etc.), por violação das regras de auxílios estatais em acordos fiscais celebrados secretamente com certos Estados-membros. E na intimação a Estados-membros (Irlanda) para que recuperassem os impostos indevidamente perdoados. E foi este trabalho parlamentar que exigiu nova legislação europeia para impor transparência e harmonização em matéria fiscal e de combate ao branqueamento de capitais.
Assim foram aprovadas, nos últimos anos, várias revisões da Diretiva para a Cooperação Administrativa (DAC), que obriga agora à troca de informação automática e sistemática entre administrações dos Estados-membros sobre contas nos bancos de cada país, acabando efetivamente com o sigilo bancário. E que incide também sobre acordos fiscais entre grandes empresas e administrações fiscais (embora o PE aponte a oportunidade perdida, uma vez que as novas regras se aplicam apenas a decisões transfronteiriças, mas excluem os acordos fiscais nos Estados-membros). O PE critica também o facto de a CE apenas ter acesso limitado ao teor desses acordos. Visto tratar-se de cooperação em matéria fiscal, o PE é apenas consultado – e a publicação dos acordos para escrutínio público, que o PE pediu, não foi aceite pelos Estados-membros.
“A legislação DAC4 prevê a troca de informação automática, país-por-país, entre administrações fiscais. O PE continua a pressionar o Conselho da UE para alargar este regime a todas a grandes multinacionais com presença na UE, independentemente do setor (Diretiva da Transparência). Mas esta legislação está bloqueada no Conselho da UE: um finca-pé que tem sido incompreensivelmente ignorado pela imprensa, pois terá decisivo impacto na transparência empresarial e financeira mundial”.
Outro domínio em que o Parlamento se revelou determinante foi na imposição às grandes multinacionais da obrigatoriedade de elaboração e publicação dos relatórios de contas de forma agregada e país-por-país (Diretiva Contabilística de 2013). Ou seja, as multinacionais com receitas globais superiores a 750 milhões de euros devem divulgar onde obtêm os lucros e também onde pagam os seus impostos na UE, discriminando dados país-por-país. Na perspetiva do PE, embora esta não seja uma medida fiscal, tem um grande impacto no combate à evasão fiscal e corrupção: a partir do momento em que as grandes empresas são obrigadas a publicar dados financeiros e de gestão país-por-país, é possível identificar para que jurisdições transferem lucros para serem tributados a taxas mínimas, em detrimento dos países onde os obtêm. Por outro lado, o facto de serem obrigadas a publicar todos os pagamentos nessas jurisdições ajuda a detetar e evitar eventuais subornos ou outras transferências ilícitas. Atente-se, por exemplo, na análise feita pela organização não governamental Transparência Internacional no relatório recentemente publicado sob o título “Under the Surface”, com base nos relatórios país-por-país de empresas europeias (veja-se o envolvimento da BP e da ENI no setor do petróleo em Angola; e o capítulo sobre a Guiné Equatorial).
A legislação europeia sobre transparência contabilística foi imposta, em primeiro lugar, à indústria extrativa/mineral. E depois aos bancos, por exigência do PE que, neste domínio, legisla em pé de igualdade com o Conselho de Estados-membros. A legislação DAC4 (4ª revisão, de 2016) prevê a troca de informação automática, país-por-país, entre administrações fiscais. O PE continua a pressionar o Conselho da UE para alargar este regime a todas a grandes multinacionais com presença na UE, independentemente do setor (Diretiva da Transparência). Mas esta legislação está bloqueada no Conselho da UE: um finca-pé que tem sido incompreensivelmente ignorado pela imprensa, pois terá decisivo impacto na transparência empresarial e financeira mundial. Os governos dos Estados-membros não querem aceitar a obrigação de publicação dos relatórios das empresas de forma acessível a todos os cidadãos, jornalistas e ONG. Por isso procuram perversamente mudar a base legal da Diretiva, restringindo-a à matéria fiscal – o que implicaria que o PE passasse a ser meramente consultado, não podendo impôr exigências. É urgente mobilizar a opinião pública europeia e internacional sobre esta questão.
Ainda no que respeita à transparência, foi por exigência do PE que a CE propôs regras para exigir a divulgação de esquemas de planeamento fiscal, medida que visa regular o setor dos intermediários financeiros. Com efeito, o setor da assessoria financeira e fiscal – bancos, advogados, firmas de auditoria, consultores ou outros profissionais – é composto de profissionais bem organizados e qualificados, constituindo uma “indústria” da criação de estruturas jurídicas complexas, engendrando esquemas agressivos de planeamento tributário e de elisão fiscal explorados pelas grandes multinacionais e pelos detentores de grandes fortunas. Esses intermediários dão aconselhamento sofisticado aos clientes que podem pagar os seus serviços, para explorarem as lacunas legais existentes, com o objetivo de reduzir as contribuições fiscais no limiar do respeito pela lei, observando-a de maneira “criativa”. Ao mesmo tempo, são frequentemente contratados pelos governos e instituições europeias para dar pareceres e redigirem legislação fiscal e financeira – a promiscuidade e os conflitos de interesses são endémicos. A obrigação de terem, agora, de divulgar esses esquemas junto das administrações fiscais permitirá um escrutínio dessa “indústria” que, até aqui, estava completamente vedado.
“Falta avançarmos decididamente na harmonização fiscal europeia propriamente dita. Um dos principais problemas no setor empresarial é a fragmentação dos sistemas tributários na UE, que concorrem deslealmente entre si, o que se deve principalmente a métodos ultrapassados de cálculo das matérias tributáveis, sem levar em consideração a realidade económica das grandes empresas mundiais e europeias, com atividades largamente transfronteiriças e digitalizadas”.
Também no que respeita à supervisão dos profissionais liberais e prestadores de serviços, a 5ª Diretiva Contra o Branqueamento de Capitais e o Financiamento do Terrorismo – que entrará em vigor em 2020 – vem obrigar a que os organismos ditos de “auto-regulação”, como aqueles que regem as profissões liberais, passem a publicar relatório anual com informação extensiva sobre as atividades de supervisão desenvolvidas, nomeadamente quanto ao respeito dos deveres de diligência e de comunicação de operações suspeitas e eventualmente ilícitas. Uma medida que certamente irritará todos os que vivem no limiar da criminalidade financeira (como os advogados que em Portugal despudoradamente se insurgiram contra a 4ª Diretiva) e se alimentam do planeamento fiscal abusivo e agressivo. Escusam de alegar violação ao princípio constitucional do sigilo profissional: as obrigações de comunicação de atividades suspeitas salvaguardam a defesa dos clientes em procedimentos civis e criminais, segundo jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Apesar de todos estes progressos com resultados visíveis, falta avançarmos decididamente na harmonização fiscal europeia propriamente dita. Um dos principais problemas no setor empresarial é a fragmentação dos sistemas tributários na UE, que concorrem deslealmente entre si, o que se deve principalmente a métodos ultrapassados de cálculo das matérias tributáveis, sem levar em consideração a realidade económica das grandes empresas mundiais e europeias, com atividades largamente transfronteiriças e digitalizadas. A proposta da Comissão Europeia sobre Matéria Comum Consolidada do Imposto sobre as Sociedades (MCCCIS, ou CCCTB em inglês) visa criar um instrumento vital na luta contra a transferência artificial de lucros das empresas para jurisdições de tributação reduzida. Simplificará o cálculo da matéria coletável nos Estados-membros, tornando-a comparável, assim erradicando a fragmentação e permitindo regras claras sobre as transferências transfronteiriças intracomunitárias. O PE já aprovou a sua resposta ao que a CE propôs nesta matéria, incluindo emendas cruciais no cálculo da base para integrar uma tributação justa dos serviços digitais. Cabe ao Conselho da UE, onde se sentam os governos, adotar esta legislação o mais rapidamente possível. Mas o Conselho tarda.
Tal como tarda, escandalosamente, em aprovar alterações propostas pela CE para a legislação sobre o IVA, a fim de impedir que a chamada “fraude carrocel” continue a desviar anualmente cerca de 50 mil milhões de dólares (quase um terço do orçamento anual da UE!) em proveito de máfias e de outros grupos criminosos organizados, incluindo a Al-Qaeda e o Daesh!
“A UE criou um enorme Mercado Interno e constitui um bloco económico poderoso, com potencial para assegurar a prosperidade a todos os seus cidadãos, bem como para ajudar a resolver problemas económicos globais. Contudo, os benefícios deste sistema têm sido desproporcionalmente canalizados para as grandes companhias e para os mais ricos, deixando os cidadãos comuns e as PME a pagarem a fatura dos serviços públicos, das pensões e de outras prestações sociais”.
Um outro domínio em que tarda a ação – apesar da forte pressão do PE desde há anos, através de diversos relatórios e campanhas políticas – respeita à proteção dos whistleblowers ou “lançadores de alertas” (“denunciantes” é o termo infeliz que costuma ser usado em português). Graças a eles/elas temos hoje conhecimento dos esquemas de evasão fiscal, corrupção e criminalidade florescentes a coberto de paraísos fiscais, empresas de fachada, ações ao portador e outras criações opacas e perversas no sistema financeiro. A CE apresentou finalmente uma proposta legislativa nesta matéria em abril passado. É um passo importante, ainda que tenha problemas: só prevê proteção por denúncias de ilegalidades, não cobrindo questões de interesse público como os esquemas revelados pelos Luxleaks – que eram legais, embora visceralmente imorais. Muito terá ainda de ser melhorado no texto que o PE está a trabalhar e vai depois negociar com o Conselho.
A tributação é um elemento-chave na relação entre política e economia, é mesmo a base de qualquer sistema democrático (“no taxation without representation”). Sistemas fiscais justos são essenciais para a eficácia e legitimidade dos Estados, dos governos e das organizações. A UE criou um enorme Mercado Interno e constitui um bloco económico poderoso, com potencial para assegurar a prosperidade a todos os seus cidadãos, bem como para ajudar a resolver problemas económicos globais. Contudo, os benefícios deste sistema têm sido desproporcionalmente canalizados para as grandes companhias e para os mais ricos, deixando os cidadãos comuns e as PME a pagarem a fatura dos serviços públicos, das pensões e de outras prestações sociais.
É crucial mobilizar as opiniões públicas para fazerem pressão junto dos governos reunidos no Conselho. Sem cobertura mediática e sem pressão política, os governos da UE – muitos capturados pela “indústria financeira” – nada farão para mudar o statu quo. O PE, por iniciativa e articulação entre as bancadas mais progressistas, tem provado saber fazer uso dos seus poderes para fazer a Europa sair da crise, restabelecer a confiança dos cidadãos e fazer valer os valores da equidade e da justiça, que constituíram a base e têm de voltar a ser objetivo da construção europeia.
As batalhas por transparência e justiça fiscal na Europa estão longe de estar ganhas. Importa ter consciência de que sem a pressão do PE nada teria mudado até aqui. E sem a acção do PE nada mudará. Por isso, também, as eleições europeias de 2019 vão ser determinantes.
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