Nos últimos tempos, ganhou destaque a referência ao “novo normal”, significando o momento que vivemos, numa fase em que, depois de um quase “shut down” a que fomos forçados, se começa a desconfinar, mas sem que existam condições para o regresso ao passado pré-pandémico.

Não obstante, os dias que atualmente vivemos são tudo menos normais, sendo, pelo contrário, marcados, quase diariamente, por uma perfeita anormalidade, vinda, muitas vezes, de quem menos esperaríamos, atendendo às responsabilidades que detém na sociedade portuguesa.

O perfeito anormal nada tem, pois, a ver com o talk-show humorístico com que, no início do século, Fernando Alvim e Nuno Markl nos brindaram na SIC. Apesar de tudo, não deixam de existir algumas analogias entre um programa que representava elementos incontornáveis da sociedade, os vizinhos ou os críticos anónimos e um artigo que analisa comportamentos de um Portugal capaz de oscilar entre o 8 e o 80, passando, num ápice, do completo isolamento para ajuntamentos capazes de fazer pensar que a Covid-19 não foi mais do que um pesadelo que se abateu sobre nós, e do qual, ao acordarmos, não restou senão uma triste recordação.

Após termos passado por uma situação de estado de emergência entre 18 de março e 2 de maio, Portugal entrou num estado de calamidade, sendo, no entanto, estranho ver, quase diariamente, atitudes diametralmente opostas por parte dos nossos concidadãos, em paralelo com decisões governamentais nada fáceis de compreender.

Na realidade, não deixa de ser difícil entender como se permitem determinados eventos e se proíbem outros, como se estabelecem regras rígidas para aceder a determinados locais e se franqueia a entrada noutros espaços, como o primeiro-ministro proíbe ajuntamentos de mais de 20 pessoas no mesmo dia em que marca presença num espetáculo com mais de duas mil pessoas nas bancadas. O que nós portugueses nos interrogamos diariamente é qual o critério que preside às decisões tomadas pelo executivo.

Exemplifiquemos algumas das contradições mais difíceis de explicar ao comum dos mortais.

Ainda em pleno estado de emergência, permitiu-se a comemoração do 25 de abril no Parlamento, dispensando deputados e convidados do uso de máscara, e admitiu-se que a CGTP celebrasse o Dia do Trabalhador, com uma manifestação em plena Avenida Almirante de Reis, junto à Fonte Luminosa, ao mesmo tempo que se impôs que as cerimónias do 13 de maio em Fátima se realizassem à porta fechada, com os fiéis remetidos ao conforto dos seus lares.

Já em estado de calamidade, permitiu-se a realização de duas sessões do espetáculo “Deixem o pimba em paz”, organizado por Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, em pleno Campo Pequeno, com a presença numa das sessões do primeiro-ministro e na outra do Presidente da República, nenhuma limitação se impôs à manifestação “Black Lives Matter”, que, em Lisboa, juntou milhares de pessoas, sobretudo jovens, que vociferaram contra o racismo e a violência policial, tema que em Portugal, uma sociedade aberta e inclusiva, é perfeitamente marginal, ao mesmo tempo que alguns dos manifestantes empunhavam cartazes que apelavam à violência…

Tudo isto enquanto o primeiro-ministro, o mesmo que esteve presente no concerto do Campo Pequeno com mais duas mil pessoas, vinha à televisão decretar a proibição de ajuntamentos de mais de 20 pessoas (10 em Lisboa), que se inviabilizou a realização dos jogos de futebol da Primeira Liga com público nas bancadas (todos os restantes foram abolidos), ou que se cancelaram as festas dos Santos Populares, por entender que poderiam contribuir para o aumento do número de infetados.

O que se pede aos nossos governantes é, acima de tudo, coerência, capacidade de tratar como igual o que é igual, não discriminação de pessoas e situações. O aumento do número de infetados com a Covid-19 em Portugal nas últimas semanas, com especial relevo para a situação de Lisboa e Vale do Tejo, tem no primeiro-ministro, mas, também, no Presidente da República, os principais responsáveis, pois é a eles que se pede que sirvam de referência, que deem o exemplo.

De nada vale passar os dias a elogiar, de forma retórica, o esforço dos profissionais de saúde que se dedicam a salvar as vidas dos afetados pela Covid-19 e, ao mesmo tempo, adotar uma conduta irresponsável, mostrando aos portugueses que, afinal, vale tudo.

A situação que vivemos nos dias que correm em Portugal, mais do que de “nova normalidade”, deveria ser designada como de “perfeita anormalidade”, tal o número de comportamentos desviantes e erráticos que temos testemunhado por parte dos mais altos representantes da Nação. É caso para dizer “estes lusitanos são loucos”.