Na semana passada, várias pessoas que conheço encheram “os twitters e os facebooks” (como diria o Dr. Paulo Futre) com um cartoon da New Yorker em que um passageiro irado dizia aos seus companheiros de voo “estes pilotos arrogantes estão desligados dos passageiros comuns como nós. Quem acha que eu devo pilotar o avião?” e estes levantavam a mão em aprovação da ideia. O alvo da graçola, claro, era o anti-elitismo de Donald Trump e seus parceiros da “Internacional Populista”. Mas, por muito que se partilhe (como partilho) a repulsa pelo primeiro presidente laranja dos EUA e a sua retórica, convém não ignorar que a ideia subjacente ao cartoon é tão demagógica como os argumentos de um Trump ou de uma Martins.
Ninguém, obviamente, quereria outra pessoa que não um piloto devidamente habilitado para pilotar um avião. Mas a alegoria do piloto como estadista e do avião como a comunidade por ele governada, embora antiga (Platão, por exemplo, usou-a invocando um navio), distorce a profunda diferença entre as duas actividades: ao contrário do controlo de um avião ou de um navio (ou do tratamento de um paciente), a política e a governação não são questões técnicas. São uma questão de preferências.
Toda e qualquer medida política, por muito justificada e benéfica que seja, tem sempre custos e, por isso, a resolução de um problema tende a criar outros: quando um governo tenta enfrentar o problema do desemprego com “apoios” à contratação de determinados grupos de pessoas, pode conseguir, através da subsidiação dessas contratações, criar empregos que, se os salários tivessem de ser comportados na sua totalidade pelas empresas, não seriam criados. Mas esse efeito benéfico é apenas “o que se vê”; escondido sob o manto de aprovação que essa “conquista” atrai, está “o que não se vê”, ou seja, o rendimento que as pessoas que pagam os impostos que financiam esses subsídios perderam e, eventualmente, os outros empregos que foram destruídos ou não se chegaram a criar.
Se, pelo contrário, um governo decidir cessar a atribuição dessas verbas, a escolha poderá implicar o fim dos empregos que só existiam por causa delas e, pelo menos no imediato, a degradação das condições de vida das pessoas que deles usufruíam. Podemos achar (como eu acho) que essa é a melhor opção, e que esse é um custo que se justifica (pela simples razão de que é mais justo que a distribuição de rendimentos numa comunidade política resulte da livre interacção dos seus membros do que do mercado da influência). Mas essa é uma preferência, tão legítima como a oposta; aos governantes – e a nós – resta escolher qual das alternativas preferimos, sem uma solução definitiva.
É claro que a competência interessa – é melhor que um líder político saiba o que está a fazer do ser um ignorante manipulável por interesses mais conhecedores do que ele. Mas por muito competentes que sejam, os governantes nunca terão – como os pilotos têm – a vantagem de haver uma resposta “técnica” para os problemas que enfrentam: na governação, o papel do “piloto” não é o de “pilotar” o “avião” de forma “correcta”, porque ela não existe: é o de olhar para o país, reflectir sobre os seus problemas e propor aos eleitores aquela que julga ser a opção com vantagens mais benéficas e desvantagens menos perniciosas para a comunidade e os seus membros.
Portugal, por exemplo, não é o que é por causa da “incompetência” dos seus políticos: é o que é por estes serem muito competentes na manutenção de um Estado profundamente injusto, que beneficia as clientelas e grupos de interesse com acesso ao poder político e instalados no sistema, em detrimento de todos os outros. Algo que, por si só, nem o “populismo” nem o “elitismo” poderão resolver. Eles apenas mudam a identidade dos beneficiados e dos prejudicados, deixando a natureza do problema intacta. Como se tem visto cá, e se verá nos EUA.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.