Até que ponto poder e uso da força estão interconectados? Geralmente, não se começa um artigo com uma questão, mas tratando-se de uma reflexão em tempos de violência política periódica, vale a pena começar por esta interrogação.

Sucedem-se as notícias de ataques a candidatos ou detentores do poder em países democráticos, com acentuada violência. O que faz com que um cidadão comum opte por usar a violência quando pode usar o voto, a manifestação pacífica e a denúncia em caso de suspeita de crime?

Provavelmente, porque este cidadão deixou de acreditar que o sistema político responde às suas necessidades e anseios. Possivelmente, deixou de acreditar na sociedade em que vive como um sistema de organização que lhe garante justiça e a sua contribuição para o governo comum. Parece ter sido nestes espaços de descontentamento que o populismo ganhou o seu território para expandir a sua influência.

Contudo, os populistas também têm sofrido ataques, tal como outros políticos de áreas mais liberais. Nesse sentido, o uso da violência para expressão de descontentamento tornou-se universal entre apoiantes e opositores aos populismos. O ataque contra o ex-presidente Donald Trump é um excelente exemplo desta situação. Nesse caso, onde está a causa?

Provavelmente, na polarização política e social que reflete uma polarização no discurso político, mas também no discurso mediático. O culto pela discussão em vez do debate, do grito e insulto em vez da conversa e contraposição de argumentos, a emoção extrema e a sua exploração em vez da racionalidade e bom senso foram premiados pelas audiências e pelo eleitorado. Assim, esta situação não é contrária à evolução das democracias, é antes um seu resultado.

Porquê o culto do “mais forte”?

Numa reflexão preenchida de interrogações, porque não acrescentar mais uma? Na verdade, por razões socioculturais, as diversas comunidades não coincidem no modo como encaram o poder e a força. Podemos ter forças de exercício de pressão ou forças sociais mais coletivistas ou mais individualistas, sociedades em que existe o terror à desordem e outras em que os momentos de revolução caracterizaram as mudanças de regime que trouxeram esperança ao povo.

Nesse sentido, cabe-nos questionar sobre as razões que levam a que exista esta vontade de mudança que se vai tornando mais violenta, apesar de, em grande parte dos países onde esta é exercida, considerarmos que existem democracias avançadas.

Recentemente, tivemos episódios diferenciados de violência sociopolítica. No caso de Donald Trump, ao que se apurou até agora, estaremos perante uma tentativa de assassinato, em França e no período eleitoral, registou-se uma série de atos violentos coletivos contra infraestruturas, autoridades e também candidatos em trabalho eleitoral.

Estados Unidos e França têm tradições bastante diferentes e uma construção social diversa, o que explica que os picos de violência sejam, também eles, diversos. No seu todo, a sociedade norte-americana é mais violenta que a sociedade francesa.

A tradição dos Estados Unidos da América assenta numa narrativa nacional de construção da unidade contra o inimigo personificado no Oeste selvagem contra o Leste civilizado. A conquista de territórios às nações índias faz parte dessa narrativa histórica fundadora da nacionalidade americana.

Contudo, esta história conta-se com base, não na coletividade, mas na iniciativa de grandes personalidades às quais se juntavam outros que levariam, então, a um desígnio coletivo. O sonho americano é consubstanciado na capacidade de o indivíduo enfrentar as dificuldades e conseguir a tão desejada mobilidade social e acesso ao poder (económico ou político).

Esta visão individualista perpassa todos os setores da vida comum e expressa-se nas várias garantias da liberdade individual expressas na constituição. É desse imaginário de construção nacional, aliado ao conceito de liberdade, que se explica a proliferação do uso de armas legais para uso individual, retirando às autoridades públicas o monopólio do exercício da força.

A própria construção do Estado norte-americano está fundada na figura do presidente que deve liderar os destinos do país. Embora existindo um Parlamento e um Senado, é na figura do presidente que ainda hoje se concentra a maior parte da decisão política. Mesmo no contexto do Senado, são os senadores que ganham destaque. Quer isto dizer que a vida política norte-americana assenta maioritariamente no prestígio do indivíduo.

Assim sendo, também existe uma maior tendência para uma violência individualizada, centrada na oposição aos detentores de cargos políticos, embora também existam situações de conflitualidade coletiva, por exemplo, associadas às questões raciais ou sociorraciais. O acesso liberalizado às armas de fogo permite que esse uso individual da força assuma um maior carácter de violência, dadas as suas possíveis consequências.

No caso da França, o Estado detém o monopólio legado do uso da força, pelo que não assistimos a uma violência de carácter individual. Apesar do seu regime semipresidencialista, a França tem mecanismos de mediação de poder que fazem com que o governo liderado pelo primeiro/a-ministro/a possa divergir politicamente da presidência em termos partidários ou ideológicos, existindo ainda um sistema parlamentar.

As grandes mudanças de sistema político ou de poder, ocorridas em França, por vezes tiveram cenários violentos, mas sobretudo de uma violência coletiva, alicerçada numa turba de insatisfeitos, liderados por indivíduos que, no entanto, não assumem o ato violento em si. Neste caso, a perspetiva coletiva do exercício da força é comum e almeja a interrupção de um tipo de orientação política mais do que o afastamento de um indivíduo.

Nestes casos, a insatisfação, seja individual, seja coletiva, acaba por expressar-se de forma violenta, mostrando que os seus atores se consideram fora dos mecanismos regulares de mudança ou olham o processo democrático como ineficaz para a mudança. Assim, o mais forte poderá ser aquele que induzirá a mudança.

A democracia em sobressalto

Estes últimos acontecimentos, a que se juntam outros, como o atentado ao Presidente Robert Fico, da Eslovénia, evidenciam três questões: os regimes democráticos não têm dado garantias suficientes de acalmia às suas sociedades no que concerne à satisfação das suas necessidades; a polarização política extrapolou o combate político e introduziu novas variantes de ação, baseadas na confrontação física; os cidadãos consideram que os meios de contestação ao seu dispor são insuficientes e que o contrato social não tem sido respeitado por parte dos políticos.

Sem conseguir responder a estas questões, dificilmente se conseguirá diminuir o exercício de violência nas ruas. É certo que cada sociedade e cultura têm formas diferentes de expressar o seu descontentamento e de se tornarem violentas. Todavia, também, é certo que todas têm ao seu dispor esse potencial uso da força que depende apenas do grau da sua insatisfação e do sucesso do uso de recursos violentos para a mudança política nos seus países.

Estarão os contratos sociais das democracias em risco, não pelos eventos isolados de violência, mas porque estes eventos se tornaram mais comuns, mesmo em países em que o exercício das forças está nas mãos das autoridades públicas?