Giulio Andreotti dominou a vida política italiana durante meio século. Sobreviveu à guerra e a sete papas, à queda da monarquia, ao fim da própria república que ajudou a fundar e ao colapso da Democracia Cristã (DC) na sequência da operação “Mãos Limpas”. Foi durante décadas um dos homens mais poderosos de Itália, várias vezes primeiro-ministro e eminência parda de outros, um fazedor de reis e, ao mesmo tempo, nas palavras do próprio, um “soldado do papa”. Sibilino, escorregadio, sombrio e por vezes sinistro, era um consumado mestre do maquiavelismo – no sentido estrito do termo – e da política como arte do possível.
À primeira vista, nada faria supor que Andreotti se tornasse tão poderoso e conseguisse sobreviver politicamente durante tanto tempo. Afinal, não era particularmente carismático e a sua fação na DC sempre foi minoritária. Os inimigos eram mais que muitos, a imprensa chamava-lhe “Belzebu” na primeira página e a sua candidatura a chefe de estado, que seria a coroa de glória de uma longa carreira, morreu à nascença devido às suspeitas de ligações à máfia e de envolvimento no homicídio de um jornalista (acabaria ilibado da maioria destas acusações, após longos processos judiciais). Porém, Andreotti sobreviveu politicamente a tudo isto e continuou ativo até ao fim. Nomeado senador vitalício, teve uma reforma descansada e morreu com 94 anos, não sem antes contribuir de forma decisiva para a queda do último governo Prodi, ao ‘tirar-lhe o tapete’ numa votação crítica no senado.
Andreotti é recordado por aforismos célebres, como quando disse que gostava tanto da Alemanha que até preferia que existissem duas. Ou como na vez em que, fingindo alguma humildade evangélica, disse reconhecer os seus limites como ser humano e político, para logo de seguida acrescentar: “porém, quando olho em volta dou-me conta de que não vivo propriamente rodeado de gigantes”. Outra frase sua aconselha a “ver tudo, tolerar muito e corrigir uma coisa de cada vez”, permitindo um vislumbre sobre a forma como prosperou num sistema político marcadamente corrupto. Mas nenhuma ficou tão célebre como esta, por demonstrar um profundo conhecimento dos mecanismos de poder que regem as sociedades humanas: “o poder desgasta aqueles que não o têm”.
Por outras palavras, poderosa é aquela pessoa que consegue que aconteça aquilo que pretende, ou negar a outras a possibilidade de o conseguirem. Isto manifesta-se através da capacidade de tomar decisões que façam acontecer aquilo que se quer, bem como de influenciar ou condicionar as decisões de outras pessoas. Quem dominar esta arte terá poder mesmo que não ocupe uma posição de autoridade formal ou dê ordens a quem quer que seja. Ao passo que outros, que julgam ter poder mas não o têm, esforçam-se em vão e acabam desgastados.
Andreotti era poderoso porque exercia o papel de mediador entre fações distintas no seio da Democracia Cristã, jogando com os interesses dos diferentes grupos para fazer avançar a sua própria agenda.
A política portuguesa não tem uma personagem complexa como Andreotti, com as suas ligações perigosas e ditos espirituosos. Mas temos um primeiro-ministro que conhece bem a natureza do poder e da arte do possível. Senão vejamos: António Costa toureia sucessivamente o PSD e o seu líder, Rui Rio, que aparentemente está entre os que se desgastam. Lida com os partidos da esquerda com a habilidade de um judoca que usa o peso do adversário (neste caso, os seus interesses e “papões” de estimação) para o lançar no tapete e manietar. E manobra de forma inteligente os seus potenciais sucessores, distribuindo-lhes presentes envenenados, fazendo-os competir entre si e não deixando que lhe façam sombra.
O problema desta forma de exercer o poder é o que virá a seguir. Quando Costa deixar a liderança do PS, a caminho de Bruxelas ou de Belém, quem terá capacidade para lhe suceder? Pedro Nuno Santos, cuja carreira arrisca ficar associada ao destino da TAP, para o bem ou para o mal? Fernando Medina, que à frente do PS teria de conseguir vencer eleições sem ser por falta de comparência ou demérito dos adversários? Ana Catarina Mendes, que herdou o lugar do líder na Quadratura, quiçá acreditando que a História é um círculo? Ou Seguro ressuscitado?
Andreotti dizia que na política o sol e a chuva alternam rapidamente entre si. O PS ainda aproveita o sol, mas já faltou mais para vir a chuva.