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“O poder dos proprietários sobre as empresas familiares não é um problema”

Há investidores que preferem apostar em empresas familiares cotadas do que em corporações, explica o responsável da área de governo das sociedades da OCDE. O poder centralizado na família pode ser garantia de eficácia.
  • Cristina Bernardo
11 Setembro 2018, 17h08

Mats Isaksson, head da Corporate Affairs Division da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), esteve em Lisboa para falar sobre práticas do governo das sociedades (corporate governance) na reunião promovida pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e pela OCDE do grupo de trabalho MENA (Middle East and North Africa). Em entrevista exclusiva ao Jornal Económico, antevê a necessidade de desenvolver normas para as novas indústrias de bens intangíveis.

O governo das sociedades pode ter impacto no desempenho económico global?

Na OCDE, abordamos o governo das sociedades como uma política pública e dentro da perspetiva regulatória. O nosso trabalho é sobre as regras, a regulação e as leis, não estamos dentro da corporação. Mas consideramos que um bom quadro regulatório de leis e normas ajudará a aumentar o acesso ao capital para as empresas e  empreendedores, o que significa que pode haver mais investimento, que podem aumentar a produtividade, o emprego e o crescimento económico. É esse o nosso objetivo final. Para nós, o governo das sociedades não é um fim em si mesmo, é uma forma de as autoridades ajudarem o mercado a fazer mais investimentos e a ter empresas mais fortes.

Existe uma correlação entre a estabilidade financeira e a aplicação dos princípios do governo das sociedades?

Sim, tem um impacto positivo na gestão do dinheiro das empresas. Se houver uma boa divulgação e transparência, os mercados poderão ter melhor acesso ao desempenho das corporações e haverá menos surpresas, digamos assim, para os mercados. É um elemento importante para a estabilidade financeira.

Alguns países debateram a questão da independência política dos supervisores de valores mobiliários. Qual é o estado global da questão hoje em dia?

Existe atualmente um amplo consenso de que os reguladores de valores mobiliários precisam de atuar de forma autónoma, independente e íntegra. E também necessitam de recursos suficientes para realizar o seu trabalho. Os mercados estão a mudar muito rapidamente, são muito internacionalizados e muito complexos, por isso é muito importante que os reguladores sejam capazes de recrutar e manter a equipa que pode e consegue seguir estas tendências, que não são fáceis de acompanhar.

Mas tem existido uma evolução positiva nesse domínio?

A evolução que poderemos ver é que cada vez mais países começam a compreender que pode haver uma boa regulação, uma legislação muito boa, mas que para além disso é também necessário ter nesse sistema a capacidade para supervisionar a aplicação dessa regulação, assim como a capacidade para fazer cumprir o que é regulamentado. É algo que aprendemos após a crise financeira. A capacidade de supervisionar de forma eficaz passou a ser uma prioridade em muitos países e continua a sê-lo. Escrever a lei não é assim tão complicado, mas, para torná-la credível, as autoridades precisam de recursos para supervisionar e fazer cumprir, e também para manterem um diálogo com o mercado.

As empresas não são obrigadas a aplicar os princípios do governo das sociedades. É um desafio acrescido?

Podemos pensar em dois níveis: primeiro, temos as regras básicas do jogo que acreditamos que devem ser aplicadas a todos e de forma igual. Habitualmente, são regras e normas relacionados com matérias como a transparência e divulgação. Num segundo nível, importa ter presente que um sistema de governo das sociedades eficiente tem de permitir alguma variedade entre as empresas, porque nem todas as corporações são iguais. Algumas são muito jovens, algumas são muito grandes, outras trabalham em finanças, outras na indústria, e outras ainda em tecnologia. Ou seja, podem ter necessidades diferentes quando se trata dos seus próprios acordos de governação corporativa. Deve haver um certo grau de flexibilidade e de proporcionalidade para que as empresas funcionem, não podemos ter um único “tamanho” para todas… O que é importante é que essa variedade e essas diferenças sejam muito claras: quando um investidor comprar uma ação numa empresa, tem de saber quais são os termos dos acordos corporativos, ter conhecimento de qual é a estrutura de votação, as estratégias, as regras para os boards. Dentro de certos limites, é muito bom para as empresas e para a sociedade, que exista alguma diferenciação.

Uma das questões mais abordadas nas apresentações da reunião MENA-OCDE foi se existe consciência entre os boards da importância dos princípios do governo das sociedades. Como é que avalia esta questão?

Não podemos fazer uma análise generalista. Há boards muito atentos a este assunto e muito comprometidos com a aplicação dos princípios, enquanto outros são mais negligentes. No futuro, acredito que vão perceber que deveriam ter estado mais atentos a esta dimensão. Hoje em dia, na Europa e nos EUA, a consciencialização  é muito grande nas empresas cotadas em bolsa. Há muita formação dos boards, muita certificação, avaliação e transparência, estão muito conscientes.

Mas a falta de representação de um determinado número de membros independentes nos boards continua a ser um problema, quer em Portugal, quer na maioria dos países MENA…

Primeiro, temos de perceber que, quando um board é eleito, todos os membros têm o dever de lealdade à empresa. Não é como se houvesse duas categorias de membros. Um board é uma unidade e todos fazem a unidade de decisões e têm responsabilidade. Alguns membros são definidos como independentes, por uma série de critérios, e o seu mérito é conservarem uma garantia adicional de “check and balance”. Há exemplos de empresas nas quais não existe obrigatoriedade de membros independentes e, ainda assim, essas empresas procuram recrutá-los, ter estas pessoas que podem pensar em diferentes perspetivas. Na verdade, é algo que pode ajudar uma empresa.

Em Portugal, muitas auditoras também prestam serviços de consultoria às empresas auditadas. Isso é um risco?

Houve uma grande discussão depois da crise financeira sobre esse tema. Diria que depende, mas é uma questão complexa. Não conheço a situação em Portugal, mas vejo argumentos em ambos os lados de que ter serviços integrados de um prestador de serviços poderia ser bom, mas a maioria tenta separar as duas linhas de negócios: a da auditoria externa e a da consultoria. Regra geral, presumo que, se se quiser fazer um bom trabalho como auditor externo, não se deve auditar o seu próprio trabalho.

Estamos perante um conflito de interesses?

Sim… Mas o outro argumento é que, em termos práticos, para grandes empresas, ter a mesma firma de auditoria reduz os custos ao longo do tempo. Talvez uma das soluções seja manter a auditora e fazer uma rotação do auditor, uma pessoa que não seja afiliada na mesma empresa. Há várias hipóteses em discussão sobre o tema, desde as mais extremas às mais softs. Mas toda a gente compreende esse potencial conflito de interesses entre consultoria e auditoria. Empresas e reguladores talvez devam pensar como minimizar esse risco de conflito.

Durante a reunião MENA-OCDE, houve uma votação entre os representantes presentes sobre como melhorar o mercado de capitais pelas empresas na região. A maioria escolheu como prioridade “melhorar a proteção dos investidores”. Esta perspetiva é uma tendência global?

Se quiser melhorar a proteção dos investidores, melhorar a capacidade do regulador, é a maneira de fazê-lo. Se quiser melhorar a proteção dos direitos dos investidores, a próxima pergunta sobre mesa deve ser “como?” Não podemos apenas dizer que precisamos de melhorar. Há uma estrutura legal e regulamentar que temos de implementar e que deve ser supervisionada e aplicada por agências reguladoras adequadas e capazes. Existe outra opção, a fiscalização privada, que é muito forte nos EUA. Acredito que em muitos países isso pode ser feito para melhorar a capacidade de fiscalização privada, mas requer que os tribunais e a jurisdição compreendam bem as questões comerciais.

Em Portugal, predominam as empresas familiares. Há alguma evidência sobre uma maior resistência à implementação dos princípios do governo das sociedades?

Não existe nenhuma evidência sobre isso. Mas podemos olhar para a questão desta forma: consideremos o início do debate sobre o governo das sociedades que teve início no Reino Unido e nos EUA, onde o grande problema era o facto de os gestores não serem controlados por não existir nenhum mecanismo, nenhuma norma que se debruçasse sobre isso. Ou seja, o CEO podia fazer o que quisesse. Em princípio, este problema é resolvido em empresas familiares, porque neste tipo de empresas sabem como o seu gestor se comporta, têm o poder de colocá-lo ou colocá-la no lugar se fizerem algo de errado. Há muitos exemplos de pequenos investidores – não estou a falar de Portugal porque não tenho conhecimento, mas sei de exemplos noutros países –, que preferem investir numa empresa cujo controlo seja do dono, porque sabem que este tem, pelo menos, o poder de cuidar da empresa. Um exemplo disso é Warren Buffett: controla a empresa, tem mais direitos de voto do que os demais, as pessoas confiam nele, sabem que está atento aos gestores, e por isso estes investidores sentem confiança para dizer “muito bem, vou investir aqui”. Há uma silver line para este problema. O que temos de fazer, é claro, é evitar situações em que o acionista maioritário abuse do seu poder face aos pequenos acionistas, e para isso precisamos de transparência e de responsabilidade. Mas não devemos ver o controlo dos proprietários como sendo o problema, porque existe o argumento de que também é a solução.

E quais são os outros desafios para um governo das sociedades bem sucedido?

Devemos chamar-lhe, antes, oportunidades em vez de desafios. Devemos olhar para o futuro, como melhorar com qualidade os direitos dos investidores e a transparência. Temos de pensar como é que iremos desenvolver a próxima geração de regras e normas que se encaixam nas novas indústrias – indústrias de alta tecnologia, indústrias com capital intangível –, indústrias onde os talentos talvez valham mais do que dinheiro. Esta é uma grande oportunidade porque, se conseguirmos, poderemos promover o crescimento dessas empresas. São empresas que precisam de capitais próprios, não podem pedir dinheiro emprestado porque têm cérebros e não se concede empréstimos a um cérebro. Elas precisam de dinheiro e nós precisamos de encontrar maneiras de os investidores poderem desenvolver relacionamentos com esse tipo de empresas. Com o crescimento de empresas como o Google e o Facebook entre outras, podemos ver que existem diferentes acordos de governo de sociedades, diferentes dos tradicionais de empresas de manufatura ou de mineração. Essas empresas têm diferentes estruturas de proprietários e de governança. Na próxima geração dessas empresas será necessário perceber qual a melhor maneira de atrair capital e como a sociedade pode ajudar os investidores e as empresas a tornar a oferta de capital dessas empresas suficiente e barato. Falou em desafio, mas eu prefiro usar a expressão oportunidade. Os modelos de negócio estão a mudar e são muito mais difíceis de avaliar, o que torna o poder relativo entre o provedor de dinheiro e o fornecedor de talento empresarial.

[Este artigo foi originalmente publicado na edição impressa de 6 de julho do Jornal Económico]
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