O populismo está aí e é um problema. Mas, contrariamente ao que se possa fazer crer, não é um problema isolado. Muitos dirão que é uma ameaça à democracia, mas há também razões para pensar o populismo como reacção a uma democracia em perda. Talvez estejamos a falar de realidades diferentes: entre um populismo que despreza a democracia e um populismo que exprime disruptivamente uma dor da democracia vai uma enorme diferença. E, no entanto, a todos chamamos populismo como se fossem a mesma realidade. Com base em quê? Com base na percepção de um problema, mas que tipo de problema e com que escala ao certo?

O populismo é habitualmente apresentado na esfera pública, nos mass media mais institucionais, até no centro de gravidade das instituições políticas liberais e representativas, como uma patologia da democracia. Alavancado em desinibidores como a crescente influência de social media sem um claro centro organizador da transmissão de conteúdos, com evidente benefício para a disseminação de fake news, “populismo” nomeia e circunscreve o essencial do que é a crise da democracia representativa, submetida a uma espargata incessante de polarizações sem mediação possível.

Pois bem, neste texto experimenta-se outra perspectiva: o populismo como aspecto político do problema do mundo social na era da globalização e da aceleração. Ou seja, o problema é muito mais amplo e, muito provavelmente, o populismo é só a ponta de um iceberg.

Populismos que doem e populismos que desprezam

O populismo pode ser encarado sob várias perspectivas. Em primeiro lugar, como resposta sobreaquecida, em esforço, a uma patologia que é o défice da democracia. Uma democracia em que a sociedade que é objecto de decisão política participa cada vez menos do sujeito que decide. Uma democracia sem povo constituído como sujeito político, ou sem expressão política da vontade popular, ou sem eficácia da sua vontade em acção e transformação, suscita sentimentos de que é preciso mais povo, mais vontade formada e mais efectivação da vontade do povo.

Quem pugna por estas reivindicações contra uma condição pós-democrática, como lhe chamou Colin Crouch no baldear do século, pode constituir assim uma resposta que procura restaurar uma vida melhor para a democracia. E quando não surgem outras respostas, que articulem mediações fortes entre sociedade e poder, tenderão a emergir respostas populistas à democracia em perda, respostas que dispensam a mediação e o tempo que esta demora.

Uma segunda perspectiva encara o populismo não como resposta, mas como manifestação que, pelo contrário, põe em evidência o problema da democracia hoje. Usando uma linguagem clínica, se a primeira perspectiva apresenta o populismo como terapia agressiva, de elevado risco, para enfrentar uma patologia da democracia que se estima grave ou mesmo muito grave, a segunda apresenta o populismo sobretudo como sintoma dessa mesma patologia.

Ora, desta segunda perspectiva não se espera um elemento terapêutico, mas também não é o caso de que, com base nela, possamos justificadamente dizer que o populismo é o problema na democracia hoje. Os sintomas podem em si mesmos constituir um problema, até se pode morrer de um sintoma não tratado. Mas, enquanto sintomas, não se confundem com a patologia de que são sintomas.

Aliás, as ameaças à potestas democratica nem sequer decorrem necessariamente de uma vontade populista. Estas ameaças chegam, surpreendentemente, do lado oposto ao do populismo, aquele em que se entendem défices democráticos, alegadamente em agravamento, não como um problema, mas como a limitação adequada do alcance de poderes democráticos, tanto mais necessária quanto mais complexa for a governação; ou então, para evitar esta limitação, a democracia deve paulatinamente aceitar a sua transformação numa epistocracia (governo do sábios).

De uma ou de outra forma, limitando-a ou substituindo-a, ou das duas formas, numa concertação híbrida, a democracia vê-se diminuída, conduzida a um lugar cada vez mais protocolar, ou de entretenimento inconsequente que a mediacracia assegura.

Uma terceira perspectiva de populismo, ao contrário das restantes, desafia e põe em causa a democracia como regime, numa atitude de desprezo em grau variável pelas instituições democráticas e pelo seu tipo de mediação. É mais confrontacional e, por isso, mais notória. Nela facilmente reconhecemos Bolsonaro ou Trump. Projectam um inimigo que seria responsável pelo mal-estar social na amálgama revanchista que fazem com o que designam por ideologia de género, marxismo cultural, politicamente correcto, etc.

Mas à medida que ganham aceitação na esfera pública, vão mais fundo e visam todas as políticas igualitárias e emancipatórias que fazem parte do património da social-democracia e do socialismo democrático, o campo da liberdade que, no passado, sucedeu à derrota do fascismo histórico. E, por isso mesmo, este revanchismo vai ressuscitando saudações fascistas, que encontram no populismo uma nova legitimidade para a mobilização e para a exclusão.

Em Portugal, infelizmente, o populismo que mais cresce na forma de um partido político é precisamente desta índole, não simplesmente anti-sistema, não simplesmente direita radical, mas veículo de um programa político que só não é incontestavelmente inconstitucional para ter de ser tolerado no quadro da lei do país. Chamar-lhe populismo é verdadeiro, mas, de longe, esse é o menor dos seus perigos. O populismo, sendo reactivo, aproveita todo o descontentamento. Mas o populismo é também ele facilmente aproveitado.

O populismo e a aceleração social

São, pois, muito diferentes, se não contraditórias, as aproximações que se podem fazer ao populismo. Mas o que é que as aproxima, permitindo identificá-las como populismo? Sobretudo traços de parentesco faciais, como se de uma família numerosa se tratasse, ainda que com índoles muito diversas, mesmo diametralmente opostas. Nenhum desses traços é imprescindível, como notou o filósofo Wittgenstein, mas de algum modo, em diferentes níveis, vão estando presentes. E se são tão presentes na sociedade contemporânea, então a possibilidade de uma superação do populismo é pouco realista sem mergulhar nas raízes sócio-económicas do nosso tempo.

Se não se pode cingir o populismo a uma dor da democracia perante os seus défices, ou ao desprezo pela democracia e as suas mediações, é porque está em causa reconhecer que, mais do que um fenómeno político novo, o populismo é a expressão política de um fenómeno social que se dissemina globalmente – a aceleração do tempo social na modernidade tardia, no contexto da globalização, da sociedade híper-mediatizada e da vida social e económica fundamentalmente movidas pela lógica do consumo.

Esta aceleração, desde logo do consumo, traduz-se numa relação com a realidade social cada mais reactiva, apenas reactiva, menos tolerante ao diferimento, incapaz de suportar a espera pela satisfação das necessidades que o desejo define. O nome “Chega” dado ao partido populista português foi, a este respeito, bem ao ponto.

Em termos psicanalíticos, é esperado que o amadurecimento psicológico de uma criança suceda através de um equilíbrio entre princípio de prazer e princípio de realidade. Simplesmente, a aceleração torna mais difícil esse equilíbrio, com sacrifício do princípio de realidade. Por isso, não espanta que haja uma infantilização impaciente, intolerante ao diferimento, concomitante à aceleração, e que tudo isto se passe pré-politicamente, não como escolha colectiva, mas como necessidade social.

Simon Gottschalk, sociólogo norte-americano tem falado de uma infantilização da cultura ocidental e aponta muito bem as vulnerabilidades que dela se seguem para a democracia: “A elaboração de políticas democráticas requer debate, exige compromisso e envolve pensamento crítico. Implica considerar diferentes pontos de vista, antecipar o futuro, e compor uma legislação ponderada. O que é uma alternativa rápida, fácil e simples a este processo político? Não é difícil imaginar uma sociedade infantil a ser atraída por um regime autoritário. Infelizmente, as nossas instituições sociais e dispositivos tecnológicos parecem corroer marcas de maturidade: paciência, empatia, solidariedade, humildade e compromisso com um projecto maior do que o seu próprio. Todas são qualidades que têm sido tradicionalmente consideradas essenciais tanto para uma vida adulta saudável como para o bom funcionamento da democracia.”

Uma sociedade apenas reactiva, híper-reactiva portanto, é muito menos a consequência do que causa do populismo e, por seu turno, este não é mais causa da crise da democracia do que a crise da democracia causa do populismo. O problema está a montante, até da política: um regime temporal acelerado imposto às sociedades sobretudo por pressão económica ao híper-consumo e que as arrasta para uma progressiva perda de autonomia. Sem autonomia, resta obedecer, não importa se a um tirano ou ao último moralismo de consumo rápido que apareceu no mercado. Perde-se a capacidade, seja ética ou política, de incorporar motivos, repelindo razões de culpabilização, elegendo bodes expiatórios, reagindo sobre o que estiver a jeito para conservar no mais alto nível de excitação a zanga social.

Não é de esperar nem de desejar regressarmos a uma era sem redes sociais imediata e permanentemente acessíveis por smartphones, não é esse sequer o problema de fundo. Dizer que o populismo é resultado das novas condições tecnológicas em que se estabelece a existência mediática nas sociedades contemporâneas é um erro. Isso seria subscrever um determinismo cego, que explicaria mas não compreenderia as razões do populismo, impedindo uma discussão crítica das mesmas. Obviamente, muita da tecnologia de que dispomos na era do digital é filha da aceleração. Por exemplo, custa crer mas é verdade: o primeiro de onze gerações de iPhone apareceu só em 2007. Mas passaram-se 11 “gerações” (mais uns tantos modelos). Até a linguagem é devorada pela pressa. O primeiro iPhone é quase de ontem, mas quem quereria aquele dinossauro.

Enquanto ainda nos for permitido o tempo para pensar e não apenas reagir e consumir, por esta ordem ou a inversa, não será abusivo concluir que está tudo ligado: primeiro, que esta voragem que se exprime em consumo tecnológico e catástrofe ambiental é também a principal causa social do populismo, da democracia em perda e do mal-viver humano nesta nossa era; segundo, que os usos da tecnologia e o design digital das nossas existências cada vez mais desmaterializadas não são menos consequência deste estado de coisas do que o populismo e a crise da democracia com que nos debatemos. E por isso podem e devem ser discutidos, perguntando como recuperar neles um regime temporal mais brando, capaz de não reagir apenas, mas de incorporar motivos para um agir humano genuíno, que traz consigo sempre um movimento de transformação, em vez de intransigência ansiosa e intolerância que repele.

A forma de vida em esforço que se impôs nesta nossa era está fundamentalmente errada e se não for mudada, e nos conformarmos ao ressentimento de a suportar, é bom que nos preparemos para a corrosão dos valores da democracia, da autonomia e da emancipação.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.