Numa iniciativa insólita e única, na passada semana o Presidente da República francês, Emmanuel Macron dirigiu-se, diretamente, a todos os cidadãos europeus através de um artigo publicado numa série de jornais europeus de diversas nacionalidades e diferentes línguas intitulado “Por um Renascimento Europeu”.

Tanto quanto a memória nos permite alcançar, foi a primeira vez que o mais alto magistrado de um Estado-membro da União Europeia (UE) se dirigiu, diretamente, aos cidadãos de toda a Europa comunitária para lhes expor as suas principais preocupações, desejos e visão do futuro da UE, em pleno período pré-eleitoral, a cerca de dois meses das próximas eleições para o Parlamento Europeu. Considerando o carácter do ato eleitoral que se aproxima e, sobretudo, a natureza da Câmara de Estrasburgo que vai ser eleita em maio próximo, a iniciativa merece uma referência especial e uma reflexão particular.

Macron ultrapassou largamente a sua dimensão de Presidente da República francesa e elevou-se a um estatuto europeu ou supranacional – em que, verdade se diga, ninguém o alcandorou mas que, manda a verdade dizê-lo, não se pode criticar nem censurar atendendo, repete-se, à natureza das eleições para o Parlamento Europeu.

O que mais ressaltou da comunicação de Macron foi, inquestionavelmente, o seu desprendimento dos temas macroeconómicos que, por regra, costumam enformar o discurso dos principais líderes europeus – as questões, por exemplo,  da reforma institucional comunitária, da união bancária, das dívidas públicas ou dos défices orçamentais – e a ênfase que colocou em problemas e questões muito práticas, que tocam muito diretamente a vida dos cidadãos, bem como o acervo de propostas que lançou e que, incontornavelmente, poderão constituir uma promissora agenda para o debate eleitoral que se aproxima.

Assim os candidatos aceitem o repto de discutir os temas sugeridos pelo presidente francês, concordando com as sugestões aventadas ou, em alternativa, propondo medidas diferentes para fazer frente aos problemas enunciados. Esse mérito do texto de Macron é inquestionável e, cremo-lo, ninguém de boa-fé o poderá questionar ou colocar em causa.

No plano das propostas concretas, Macron não se detém nos habituais lugares-comuns que costumam dominar os períodos eleitorais. Avança com propostas concretas que muito mau seria não merecessem a atenção dos europeus. Quatro breves exemplos dar-nos-ão a dimensão das propostas formuladas por Macron.

Desde logo, como forma de defesa dos cidadãos e dos Estados contra a criminalidade informática, “a criação de uma Agência europeia de proteção das democracias que providenciará peritos europeus para cada Estado membro para proteger o seu processo eleitoral contra os ciberataques e as manipulações. Neste espírito de independência, também devemos proibir o financiamento dos partidos políticos europeus por potências estrangeiras. Devemos banir da Internet, com regras europeias, todos os discursos de ódio e de violência, pois o respeito pelo indivíduo é o alicerce da nossa civilização de dignidade”.

Depois – e como forma de responder a um dos principais problemas com que a Europa da União se tem confrontado e que mais tem contribuído para enfraquecer o próprio espírito europeu, “repensar o espaço Schengen: todos os que querem ser parte desse espaço devem cumprir obrigações de responsabilidade (controlo rigoroso das fronteiras) e de solidariedade (a mesma política de asilo, com as mesmas regras de acolhimento e de recusa). Uma polícia de fronteiras comum e um serviço europeu de asilo, estritas obrigações de controlo, uma solidariedade europeia para a qual contribui cada país, sob a autoridade de um Conselho europeu de segurança interna”.

Sob esta forma ou qualquer outra que venha a ser aprovada, parece incontestável que é tempo de a Europa encarar de frente e de uma vez, e a uma só voz, a questão das migrações que pressionam as suas fronteiras. O modelo sugerido é ousado mas a proposta tem a virtualidade de existir e de estar aí para ser debatida, discutida e contraditada. A manutenção do atual statu quo é que carece de todo o sentido e ameaça, a cada dia que passa, o projeto europeu.

Centrando-se nas questões económicas, Macron ousa sugerir que devemos reformar a nossa política de concorrência, repensar a nossa política comercial: punir ou proibir na Europa as empresas que prejudicam os nossos interesses estratégicos e os nossos valores essenciais, como as normas ambientais, a proteção dos dados e o justo pagamento do imposto; e assumir, nas indústrias estratégicas e nos nossos concursos públicos, uma preferência europeia, tal como o fazem os nossos concorrentes americanos ou chineses”.

Também aqui somos colocados perante uma evidência que parece indiscutível. Se a União se pretende posicionar no mercado global como um ator em pé de igualdade com os seus principais concorrentes, deverá adotar as práticas e as políticas que a defendam e a protejam das práticas protecionistas que os seus rivais adotam com frequência redobrada. Por outro lado, face aos desafios dos nacionalismos que ameaçam a União com uma força redobrada, a proposta do Presidente francês é clara. O projeto europeu baseia-se na liberdade, na proteção e no progresso. Ora, é com base nesses valores que devemos construir um Renascimento europeu.

“Não podemos deixar os nacionalistas sem solução explorar a ira dos povos. Não podemos ser os sonâmbulos de uma Europa amolecida. Não podemos permanecer na rotina e nas proclamações. O humanismo europeu é uma exigência de ação. E por toda parte os cidadãos exigem participar na mudança.

“Até ao fim do ano, com os representantes das instituições europeias e dos Estados, organizemos uma Conferência para a Europa a fim de propor todas as mudanças necessárias para o nosso projeto político, sem tabu, nem mesmo a revisão dos tratados. Esta Conferência deverá associar painéis de cidadãos, auscultar os académicos, os parceiros sociais, os representantes religiosos e espirituais. Definirá um roteiro para a União Europeia traduzindo em ações concretas essas grandes prioridades”.

A ideia de uma Conferência refundadora do projeto europeu não sendo original, é ousada sobretudo partindo do chefe de Estado de uma das principais nações europeias. Também aqui seria um desperdício rejeitar liminarmente o objetivo, ainda que, eventualmente, haja necessidade de afinar o método.

Trata-se, inquestionavelmente, de um documento que deve ser maturado, refletido e ponderado. Respondendo a uma preocupação com o estado atual da União, é uma das mais sérias propostas que têm sido apresentadas sobre o futuro da mesma. Ignorar os problemas identificados e as sugestões apresentadas, constituiria mais uma oportunidade perdida para uma União que se tem caracterizado por desaproveitar os poucos contributos para o seu renascimento. No futuro, os europeus e as gerações vindouras não nos perdoariam mais uma oportunidade perdida.