Há duas semanas, numa qualquer conferência que abençoou com a sua muito desejada presença, o Presidente da República repetiu um discurso que não se cansa de fazer desde que foi eleito para o cargo que ocupa.

Referindo-se a políticas tidas como “estruturais”, Marcelo disse que “não pode tudo parar” com “o fim das legislaturas”, nem “alterar-se governo a governo”. O interesse nacional e os objectivos dessas políticas “não se compadecem com recomeços cíclicos governo a governo ou legislatura a legislatura”, e como tal, argumenta o Presidente, seria necessário que os vários partidos políticos promovessem “consensos vastos de regime, mais vastos que maiorias parlamentares conjunturais”.

Embora tido como banal e repetido há décadas por toda a gente, este tipo de discurso é pura e simplesmente absurdo. Nunca parece ocorrer aos seus autores que um sério obstáculo à obtenção de “consensos” seja, não a oposição partidária a esse esforço, mas a divergência interpartidária em relação ao que devem ser os objectos e os conteúdos desse “consenso”, como nunca lhes parece ocorrer que o facto de algo ser “consensual” não torna a coisa necessariamente boa, nem sequer melhor que as alternativas, e que mais importante do que a mera existência de um “consenso” deve ser a substância do dito.

Mas mais do que isso, discursos como este do Presidente são, no seu âmago, profundamente antidemocráticos. É claro que, se as maiorias e os governos mudam de quatro em quatro anos (ou menos), é sempre possível que uma boa política seja interrompida por quem chega de novo ao poder. Mas, como será fácil perceber, o inverso é igualmente verdade, e só é verdade num regime que permita a mudança periódica.

A vantagem da democracia, ao contrário do que as palavras de Marcelo insinuam, é precisamente estar dependente de ciclos políticos. O que a democracia tem de bom é precisamente permitir a uma sociedade mudar as suas opções políticas, seja porque as circunstâncias em que elas foram tomadas mudaram, seja porque se verificou que foram a escolha errada, seja por os resultados previstos não terem sido obtidos, ou até porque se comete um erro ao se julgar que nunca deviam ter sido adoptadas.

Os custos de uma eventual interrupção de uma política “boa” (sendo que o que é uma política “boa” para um eleitor do CDS é provavelmente uma política “má” para um eleitor do PCP) são o preço que pagamos pela oportunidade de interromper políticas que entendamos serem más. Que isto tenha de ser explicado ao Presidente da República, suposta salvaguarda do “regular funcionamento das instituições” democráticas, não augura nada de bom.

É claro que não é de admirar que Marcelo tenha essa hostilidade aos “ciclos políticos” e à possibilidade de se mudarem políticas. Primeiro porque essa foi a cultura política predominante em Portugal dos primórdios da Monarquia Constitucional aos últimos suspiros do Estado Novo. Como um século e meio a pensar assim não se apaga de um dia para o outro, não espanta que hoje em dia grande parte do eleitorado ache que “os políticos” deviam “era entender-se em vez de estarem sempre a dizer mal uns dos outros”, como não espanta que, querendo ser popular, Marcelo procure apelar a esse sentimento.

Em segundo lugar, os grupos de interesse instalados nos alicerces do regime – este e os outros que o antecederam – prezam, por razões óbvias inerentes à sua condição, a imutabilidade das políticas que os regem, pois esta é o garante da sobrevivência dos seus privilégios.

Sendo Portugal um país pobre, esses privilégios poderão não ser muitos, nem extraordinariamente avultados, mas dão-lhes (aos “senhores Professores Doutores” de Direito, aos “trabalhadores” sindicalizados, aos “empreendedores” dos telefonemas aos gabinetes ministeriais, aos advogados que vendem serviços ao Estado, aos “consultores” deste e daquele partido, e a tantos outros para os quais esta coluna não tem espaço) a segurança que falta aos que tal sistema deixa do lado de fora.

Mas há ainda uma outra razão para essa animosidade de Marcelo para com as “mudanças de política” de “quatro em quatro anos”: Marcelo Rebelo de Sousa, ilustre Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e estrela televisiva tornada Presidente da República Portuguesa, nunca deixou de ser o pequeno “Celinho” do “Lar da Criança” (uma boa escola que não merece a eterna condenação a ser associada ao seu mais ilustre antigo aluno) que sonhava ser Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo como foi o seu padrinho.

Não quero com isto dizer, como à “esquerda” se dizia de Cavaco, que Marcelo é “fascista”. Um homem dado às tropelias jornalísticas a que Marcelo era dado enquanto exerceu a profissão, ou com a sua notória incontinência mediática, seria visceralmente incompatível com uma vida sob a censura do antigamente, e por isso não duvido que o Presidente tenha, na sua juventude, visto com bons olhos a queda do seu homónimo e do regime a que este presidiu.

Quero dizer, no entanto, que Marcelo é e nunca deixou de ser um produto intelectual do Estado Novo, que por muito que se entusiasme com “o povo” e aprecie o “contacto” com “as pessoas”, desconfia instintivamente delas, ao mesmo tempo que sendo um político que não fez nem faz outra coisa para além das intrigas de corredor e gabinete de uma “classe política” obcecada com a “politiquice”, desconfia instintivamente dessa “classe política”, da sua tendência natural para essa “politiquice”, e da incapacidade do “povo” para não ser enganado pelas artimanhas da dita “classe”.

E como poderia ser de outra maneira? Como poderia Marcelo não desconfiar dos “políticos” e do “povo” que os observa, quando todos os dias se olha ao espelho, e todos os dias vê nas sondagens a sua estratosférica popularidade? Como poderia Marcelo não desconfiar das “pessoas” e de uma “classe política” que as “manipula” em prol das suas ambições pessoais, quando sabe que ele próprio manipula “as pessoas” em prol das suas ambições pessoais, e vê “as pessoas” deixarem-se levar pelo seu engodo?

Como poderia Marcelo não desconfiar da possibilidade de “os políticos” sacrificarem políticas potencialmente eficazes em detrimento da sua popularidade, quando o próprio Marcelo sacrifica a defesa da normal alternativa democrática em detrimento da sua popularidade? No fundo, a falta de apreço de Marcelo por essa normal alternativa democrática é também um sintoma de uma enorme falta de apreço por si próprio. Não admira que sinta uma tão grande necessidade de aprovação popular.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.