A situação epidemiológica provocada pela Covid-19 obrigou-nos a alterar o nosso estilo de vida e a maior parte dos nossos comportamentos como nenhuma outra circunstância o tinha feito.

Para além do impacto social, emocional, económico e financeiro que os planos de controlo da doença impuseram nas nossas vidas, o impacto que esta situação provocou num processo cultural e intrínseco ao desenvolvimento humano, como é a morte e o morrer, requer e merece uma reflexão profunda.

É verdade que todos nós, num qualquer momento da nossa vida, já experienciámos, ou vamos experienciar a perda de alguém significativo. As reações a estas perdas podem ser diversas, mas tendencialmente são intensas e desafiantes a vários níveis.

Em termos afetivos, a tristeza é intensa, a ansiedade presente, bem como o desânimo, o desinteresse ou o desinvestimento no mundo. Há tendencialmente muita impaciência, irritabilidade e/ou um sentimento de vazio enorme. A nível físico é frequente o “aperto na garganta”, a pressão no peito, as dores de cabeça e musculares, os tremores, a fadiga e o cansaço.

A nível comportamental o choro, a agitação, as alterações do apetite e do padrão do sono, são típicas. A nível cognitivo, destacam-se as dificuldades de concentração e de memória, o atordoamento, a confusão e a dificuldade em tomar decisões. E, finalmente, a nível social, mas não menos importantes, são habituais dificuldades ocupacionais e tendência ao isolamento social.

Independentemente dos sintomas, e da sua intensidade, em circunstâncias normais, a maior parte dos indivíduos acabam por conseguir lidar com a perda e retomar os seus padrões normais de funcionamento, ainda durante o processo de luto, que poderá ocorrer até ao segundo ano após a perda.

No entanto, o período que atravessamos rompe claramente com a normalidade deste processo, criando um enorme desafio a todos nós, enquanto seres humanos individualmente, mas também em termos sociais e culturais. Em primeiro lugar, as mortes que ocorrem nesta altura, estejam ou não relacionadas com a Covid-19, têm lugar num contexto em que as medidas de contenção da doença impedem um conjunto de comportamentos e rituais culturais que nos ajudam coletivamente à adaptação, nestes momentos de grande complexidade e sofrimento.

A título de exemplo, neste período de pandemia, qualquer doente hospitalizado ou institucionalizado, está impossibilitado de receber visitas, isolado do afeto das pessoas que lhe são significativas. Os familiares/outros significativos do doente vivem a angústia de não poderem transmitir esse afeto e, simultaneamente, a dificuldade de acompanhar a situação e evolução clínica, que causa uma enorme ansiedade pela perceção de abandono.

Isto poderá levar, e/ou aumentar, a sentimentos de impotência por não poder acompanhar o seu ente querido, que nesta altura facilmente se agravam, pela privação do contacto com a rede social de apoio tão importante para apaziguar alguma desta angústia sentida. Nas situações em que há um agravamento da situação clínica do doente, e/ou morte, muitas vezes inesperada, o enlutado, experiencia uma confusão de sentimentos, muitas vezes até uma reação de choque, que mais uma vez serão difíceis de gerir sem a presença, sobretudo física, do apoio e o afeto de muitos dos seus familiares e amigos.

Nas situações de morte, e para agravar, por motivos de saúde estão desaconselhados os aglomerados de pessoas e, portanto, limitadas as cerimónias fúnebres aos familiares mais próximos. Os rituais fúnebres, enquanto rituais de despedida, constituem-se como instrumentos culturais que ajudam, de alguma forma, a aceitar a realidade da morte e, simultaneamente, paradoxalmente, a testemunhar a vida da pessoa falecida prestando-lhe uma homenagem.

Nesses momentos, a reunião de familiares e amigos que expressam os seus sentimentos, e se disponibilizam para amenizar a tristeza sentida pelos enlutados, assumem uma função comunitária extraordinariamente importante na facilitação de apoio, afeto e solidariedade.

Durante o estado de emergência, e como medida de saúde pública, os funerais foram limitados a um máximo de dez pessoas. Embora neste momento já não vigore esse limite, ainda se recomenda a presença apenas da família. Esta situação, certamente representou, e poderá continuar a representar, uma fonte de stresse e angústia adicional aos enlutados, com o aumento da probabilidade da presença de sentimentos adversos de frustração e raiva, e até, sentimentos de culpa por não se conseguirem concretizar os rituais fúnebres como desejariam.

Se o ente falecido tiver sido diagnosticado com a Covid-19, os constrangimentos são ainda maiores, com recomendações específicas da DGS para os cuidados pós-morte. Esses incluem uma pressão para evitar o enterro do corpo, sugerindo-se a cremação, que nem sempre seria o desejado pela pessoa falecida ou pelos seus familiares. Mesmo nas situações em que não há cremação, está proibida a abertura do caixão, a ausência do cortejo fúnebre e da celebração de missa, e o velório limitado ao dia do funeral.

Estas práticas fúnebres diferentes, em contexto de pandemia, não só poderão comprometer ou dificultar o processo de luto perante uma perda de alguém significativo, como introduz também uma nova forma de tristeza individual e comunitária.

Antes da pandemia, estimava-se que entre a população enlutada, 10% tinha probabilidade de não conseguir retomar os seus padrões normais de funcionamento, e poder desenvolver uma perturbação de luto prolongado. A literatura identificava ainda que se poderia chegar aos 76% se fossem adicionadas as circunstâncias adversas nos casos de morte inesperada.

Tendo estes dados em consideração, e o cenário do contexto inerente a uma situação de pandemia, tornou-se importante uma reflexão conjunta da sociedade e da comunidade religiosa, que tem ecoado também na comunidade científica, particularmente entre os psicólogos, para o desenvolvimento de projetos de investigação que ajudem a compreender estas mudanças e as suas consequências.

Estes projetos têm como objetivo último o desenvolvimento esforços/estratégias que ajudem a minimizar os efeitos negativos da vivência da perda em contextos de pandemia, bem com sugerir um conjunto de recomendações, à semelhança das que resultaram de estudos anteriores e da intervenção clínica de sucesso com esta população, sugeridos também pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (ver caixa em baixo).

Por isso, se estiver a passar por um processo de luto e sentir que está preso no seu sofrimento, que tem dificuldade em retomar os seus padrões normais de funcionamento, não terá que vivenciar esse processo sozinho. Peça ajuda e contacte um profissional de psicologia especializado em consultas do luto. Ainda que o conceito de proximidade possa ter sido desafiado, mais do que nunca, nos momentos difíceis, temos e podemos estar juntos!

Se tiver experienciado uma perda de um ente significativo durante este período de pandemia:

1) Não adie o luto: expresse a sua dor e as suas emoções.

2) Não se isole emocionalmente: procure o apoio dos familiares e amigos recorrendo aos meios tecnológicos.

3) Respeite o seu tempo: o luto precisa de tempo de oportunidade, é necessário aprender a estar com a dor para a transformar.

4) Respeite as suas emoções: permita-se vivenciar todas as emoções contraditórias que possam surgir. Todas são legítimas.

5) Procure ânimo em tarefas que lhe dão alguma satisfação e cuide de si.

 

A autora assina este artigo na qualidade de coordenadora de um estudo transnacional na área do luto durante a pandemia Covid-19