A forma como foi concertada a recente nomeação da antiga ministra da defesa alemã Ursula von der Leyen para presidente da Comissão Europeia, transporta-nos para os debates sobre o déficit democrático que tem sempre acompanhado a construção do projeto europeu. O Parlamento Europeu e a democracia europeia foram duas vítimas da negociata. O acontecimento foi um revés para quem pugna pelo reforço da democracia na União Europeia (UE). A mudança de paradigma e, portanto, de legitimidade, que eliminou o procedimento do Spitzenkandidaten, reduziu o Parlamento Europeu a uma instituição acessória e subalterna, dependente de jogos políticos. Afinal os mecanismos de poder do passado não foram ainda enterrados.

Se isto é, por si só, muito grave, o que lhe está subjacente é muito pior. Tratou-se de mais uma inequívoca demonstração do desprezo que a intelligentsia nutre pela vontade dos povos. À sua revelia, tirando partido do acesso privilegiado aos mecanismos institucionais ao seu alcance, a intelligentsia tem vindo paulatinamente a criar as bases de uma federação europeia, como se não existissem outras alternativas. Mas incorrem em vários erros dramáticos.

Acreditam piamente na utopia de um mundo globalizado sem nacionalismos e sem fronteiras nacionais. Como isso é para eles uma verdade inquestionável, a Federação pode e deve ser uma realidade tão rápido quanto possível. Os séculos de conflitos, preconceitos e animosidades entre os povos europeus são descartáveis. A cultura não é importante. Só provincianos retrógrados se preocupam com esses temas. Isso são minudências que as elites resolverão na passada. Os países que aderiram à UE, uma vez lá dentro, serão rapidamente socializados e comportar-se-ão de acordo com a norma.

Têm fé na construção de um projeto federal sem contestação. Contudo, não foi esse o caso das unificações políticas da Alemanha e da Itália. Foram processos com sangue, suor e lágrimas. Envolveram movimentos populares, insurreições, conspirações, revoluções, levantamentos, revoltas, repressão e guerras. As elites desempenharam um papel crucial, mas aquelas só aconteceram porque os povos se reviram naqueles processos, as massas aderiram e participaram ativamente neles. Não foram impostos pelas elites.

Aquelas unificações foram processos top-down. Começaram pela definição política, o resto veio por acréscimo. Ao contrário, a construção europeia começou por baixo, na expetativa de criar, no final da estrada, a inevitabilidade da união política. Aqui a “coisa” começou a complicar-se. Deviam ter consultado os oráculos da ciência política para se informarem como se constrói uma solução federativa bottom-up sem participação popular. O resultado destes equívocos está à vista. A Polónia e a Hungria ilustram bem o caso, para referir apenas dois exemplos.

Será que a construção do projeto europeu podia ter seguido outro caminho? Podia! Com menos ambição tinham-se dado passos mais curtos, mas mais seguros. Falamos de uma Europa baseada num modelo intergovernamental sustentado na cooperação de nações soberanas. No longo prazo podia funcionar como a antecâmara de uma federação, acompanhada pela adesão e o sufrágio dos povos. A intelligentsia continua sem querer perceber que truques e jogos de poder como o da Sr.ª von der Leyen só servem para descredibilizar a ideia que pretendem impor.