Antes de se iniciar na sua actual carreira de agenda telefónica ambulante, José Manuel Durão Barroso foi primeiro-ministro de Portugal.

Corria o ano de 2002, e nem a falência do “guterrismo” e a desistência do seu padroeiro foram suficientes para que o PSD conseguisse uma maioria absoluta no Parlamento. Coligado com o CDS e obrigado a manter o défice público abaixo dos 3% do PIB, Durão rapidamente se esqueceu da retórica reformista que usara na campanha eleitoral, e deixou tudo como encontrou, excepto o fisco, que ficou mais poderoso, invasivo e voraz.

Ao longo de dois anos, a “obsessão com o défice” gerou no eleitorado um descontentamento que parecia anunciar uma derrota nas eleições de 2006. Para sorte de Durão, os países importantes da “Europa” viram nele a irrelevância certa para ser Presidente da Comissão da União (não se enganaram), e o homem não desperdiçou a oportunidade de salvar a pele.

No processo, entregou o poder a Pedro Santana Lopes, que nos meses seguintes fez questão de demonstrar à saciedade a sua total incompetência para o cargo, que assim caiu no colo revestido por Armani de José Sócrates. Nos quatro anos seguintes, o “animal feroz” acumulou promessas, anúncios de projectos megalómanos, casos de legalidade duvidosa cuja verdadeira extensão só recentemente seria conhecida, e dívida pública.

O PSD foi acumulando líderes. Marques Mendes tentou reconquistar credibilidade para o partido afastando figuras autárquicas com relações complicadas com a lei, Menezes representou a revolta dos grupos partidários afectados por essa tentativa, e Ferreira Leite a consciência de que o “socratismo” não passava de uma fraude que deixaria o país falido.

Em 2009, Sócrates já não tinha meios para comprar o número de votos suficientes para renovar a maioria absoluta no Parlamento, mas ainda conseguiu que o PS fosse o partido mais votado. Dois anos depois já não havia dinheiro para nada, e teve de largar a protecção que São Bento lhe dava perante a Justiça.

Ao poder regressou o PSD, coligado com o CDS e liderado por Pedro Passos Coelho, que com o país sob resgate financeiro logo se esqueceu da retórica reformista que usara na campanha, e deixou tudo como encontrou, excepto as carteiras dos portugueses, cada vez mais vazias devido à “austeridade” causada pela bancarrota de Sócrates e aplicada pelo seu sucessor.

Em 2015, o PSD ainda foi o partido mais votado, mas com muito menos apoio do que conseguira em 2011, e nem somados com os do CDS teria deputados suficientes para uma maioria parlamentar, abrindo caminho a António Costa. Desde então, Passos foi substituído na liderança por Rui Rio, que há dias teve de enfrentar uma tentativa de o remover por parte de Luís Montenegro, a que sobreviveu sem pôr fim ao que a motivou.

Entretidos a discutir se o PSD deve usar a etiqueta de “esquerda” ou de “direita” em vez de discutirem quais os problemas do país e as soluções para eles, os figurões do PSD e as pessoas que se ocupam a comentá-los ficam sem perceber a natureza da crise do partido.

Rio pode ser um mau líder (não por ser “brando” com Costa ou ineficaz a “passar a mensagem”, mas pela sua associação a gente como Salvador Malheiro, Elina Fraga e agora até a Menezes, que sempre combatera, e às políticas que preferem), mas o problema do PSD não é uma questão de liderança nem se resolverá com a sua substituição por Montenegro. A crise do PSD é uma crise da sociedade portuguesa.

No século passado, a entrada na CEE e as taxas de juro baixas deram duas maiorias absolutas ao PSD e quase uma ao PS. Mas, a partir de 2000, começaram a sentir-se na economia portuguesa os efeitos da falta de capital e do excesso de incentivos ao “sector não-transacionável”, bem como da expansão da dívida pública para níveis que tornavam novo endividamento demasiado dispendioso e pediam uma carga fiscal cada vez mais elevada, fazendo com que os governos deixassem de ter meios para dar aos portugueses o tipo de benesses a que se tinham habituado.

Com a economia estagnada e as contas públicas apertadas, o partido que estiver no poder está condenado a frustrar as expectativas dos eleitores a quem distribuíam proveitos nos tempos de “vacas gordas”, o que faz com que o apoio eleitoral que tenham (nunca comparável ao recebido pelo PSD em 1987 ou 91) para lá chegar se dissipe depois, deixando as clientelas e os boys apeados.

Resulta daqui que um dia o PSD regressará ao poder, quando o PS sofrer a erosão do poder inerente ao ser-se governo nas condições em que se é governo em Portugal. Poderá até conseguir uma maioria absoluta, se um governo socialista provocar um descalabro qualquer (como Santana conquistou uma maioria absoluta para Sócrates). Mas daí decorre também que enquanto estiver no poder, o banquete orçamental a ser servido aos dependentes será sempre demasiado modesto para os seus apetites, e que a permanência no poder será curta, porque o eleitorado culpará o governo do partido pela inevitável penúria.

No fundo, é isto que faz com que Rio, Montenegro (um maçon que recebeu 400 mil euros em ajustes directos de autarquias do PSD entre 2014 e 2018) e as suas respectivas pandilhas se prestem às tristes figuras que têm feito: como os lugares a ocupar são escassos e pouco duradouros, a sua sobrevivência depende de estarem no controlo do pouco que os partidos têm para oferecer.

E é por isso que o PSD só poderá ultrapassar a sua profundíssima crise quando tiver uma liderança (Miguel Morgado? Pedro Duarte? Alguém ainda por nascer?) que perceba que para tal acontecer a sociedade portuguesa precisa de mudar. E talvez nem nesse caso o consiga, porque as sociedades não mudam apenas por alguém as querer mudar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.