Quase tudo. Começando pela forma ligeira como se decidiu invadir o país sem ponderar as futuras consequências. Depois da experiência soviética, e da animosidade histórica dos afegãos a exércitos estrangeiros, não seria expetável nem uma vitória fácil nem uma receção calorosa dos contingentes internacionais.
A forma como foi conduzida a campanha tornou impossível uma vitória à partida extremamente difícil. A intervenção internacional contribuiu para ampliar a ameaça que pretendia suprimir, provocando ressentimentos em largos segmentos do mundo muçulmano, tendo contribuído para alimentar a fornalha do terrorismo. Ignorou-se nessa decisão, o facto da esmagadora maioria dos terroristas (15 em 19) que participaram no ataque às torres gémeas em Nova Iorque no dia 11 de setembro de 2001 serem sauditas, terem combatido na guerra civil da Bósnia, e tido treino de pilotagem nos EUA.
O que podia ter sido uma resposta cirúrgica aos ataques do dia 11 de setembro contra a Al-Qaeda, para mostrar a determinação americana, foi ampliado e transformado numa questão de segurança global. Tratou-se, pois, de uma guerra de escolha e não de necessidade. Fazendo tábua rasa da história, os EUA repetiram os mesmos erros da União Soviética. Não se limitaram em ir atrás de Osama Bin Laden e da Al-Qaeda. Sonharam com a possibilidade de estabelecerem uma democracia liberal no Afeganistão. Sem estabelecermos uma ordem de importância relativa, procuraremos perceber os principais motivos que explicam o fracasso de 20 anos de intervenção militar internacional no Afeganistão liderada pelos EUA.
Começaremos pela deficiente apreciação estratégica efetuada pela Administração americana, personificada pelo então secretário da Defesa Donald Rumsfeld, o principal mentor da intervenção. A arrogância sobrepôs-se ao julgamento estratégico lúcido. Rumsfeld subvalorizou o desafio. Tudo se iria resolver rapidamente. Não eram necessárias tropas no terreno, bastava uma força anorética de uns parcos milhares de soldados. A resposta estava na tecnologia. A guerra seria ganha com o recurso a drones, bombas inteligentes e observação satelitária.
O objetivo inicial da campanha militar era destruir e desmantelar a Al-Qaeda. Rumsfeld não estava preocupado com o futuro do Afeganistão. O dia seguinte à derrocada do regime Talibã não tinha sido planeado. Rumsfeld recusava-se a fazer institution building e construção da paz. Mesmo não querendo, alguém tinha de o fazer. Este desprendimento relativamente ao futuro do país agravou-se a partir de 2003 com a invasão do Iraque. A obsessão de Washington com o Iraque, deixando o Afeganistão para segundo lugar nas suas preocupações estratégicas, foi profundamente nociva.
O desprezo dos sucessivos alertas de observadores privilegiados permitiu o renascimento dos talibãs, promovido pelos serviços secretos paquistaneses. Só por volta de 2007 é que os EUA perceberam o que estava a acontecer, algo a que a observação satelitária se mostrou incapaz de detetar, dada a sua inutilidade para acompanhar desenvolvimentos sociais. A campanha tinha deixado de visar a reconstrução e o desenvolvimento, para passar a ser de contra-subversão.
Os equívocos de Bona
Para ultrapassar o vazio político criado pelo derrube do regime Talibã, foi necessário estabelecer um governo provisório e lançar as bases de uma solução política estável e permanente. Em dezembro de 2001, reuniram-se em Bona, sob os auspícios da ONU, 25 sábios afegãos para encontrarem uma fórmula de governo para o país.
Logo aqui cometeram-se dois erros de palmatória. O primeiro foi assumir que os talibãs tinham implodido e deixado de ser atores políticos relevantes na sociedade afegã. Não se percebeu que os talibãs não tinham sido aniquilados, foram apenas “empurrados” do poder. A paz negociada em Bona “esqueceu-se” de os incluir nas negociações, desperdiçando-se assim uma oportunidade soberana de os integrar no mainstream político, aproveitando o estado debilitado em que se encontravam.
O segundo foi o pacote de medidas acordadas, que incluía a adoção de uma nova Constituição, a criação de um sistema judicial independente, a realização de eleições livres e um sistema de segurança centralizado, entre outras, sem levar em consideração as especificidades da sociedade afegã. A Constituição adotada em 2004 propunha um modelo governativo altamente centralizado, incompatível com a história e a tradição tribal do país, um erro com consequências desastrosas.
O mesmo se pode dizer relativamente à realização de eleições, que se têm pautado pela legitimação da fraude. Só um fundamentalismo democrático cego pode considerar as eleições de 2004, e as seguintes, um instrumento de consolidação da democracia. É um devaneio acreditar que soluções políticas próprias de sociedades avançadas e de democracias liberais se podem aplicar numa sociedade tribal e pré-moderna como a afegã.
Uma campanha contra-subversiva disfuncional
A evolução do objetivo estratégico a atingir pelas forças internacionais gerou muita confusão. De mudança de regime passou-se para uma operação de reconstrução e desenvolvimento, que em vez de evoluir para uma situação política e securitária estável regrediu para uma campanha contra-subversiva, tardiamente identificada.
Só em 2007 é que os EUA deram conta que estavam envolvidos numa contra-subversão. Combateu-se durante muito tempo a guerra errada. As campanhas contra subversivas ganham-se através da ação política e com o apoio da população, não com o recurso intensivo ao hardware militar materializado, por exemplo, no emprego sistemático do poder aéreo, responsável pela alienação da população e pelo repúdio das forças internacionais.
Dois pecados mortais afetaram decisivamente a ação contra-subversiva internacional. Um prende-se com a ausência de um plano de atuação unificado, outro com a unidade de comando.
As diferentes organizações internacionais no território tinham as suas próprias agendas, muitas vezes não coincidentes. Nem a ISAF dispunha de um plano unificado. Os contingentes tinham múltiplas missões atribuídas (contra-subversão, institution building, reconstrução económica) sem prioridades estabelecidas. Para além disso, quando o plano não se ajustava à agenda dos países contribuintes com tropas, os seus contingentes faziam o que as suas capitais lhes mandavam fazer, em vez de seguirem os desígnios operacionais do comandante da ISAF.
O segundo pecado prende-se com a unidade de comando que uma campanha contra-subversiva exige, com a existência de uma autoridade que coordene a ação militar e os esforços civis, o que estava longe de acontecer. A NATO tinha duas missões no terreno (ISAF e SCR); as forças militares americanas tinham quatro cadeias de comando diferentes. Não havia um primus inter pares.
Mas se não existia um plano internacional, também não havia um plano afegão. Karzai e o seu governo não tinham a capacidade nem a competência para gizarem um plano. Não havia no governo ninguém preparado para implementar os fantásticos planos propostos pela comunidade internacional. A cooperação entre os afegãos e as organizações internacionais essenciais para o sucesso da missão no Afeganistão deixava muito a desejar.
Por outro lado, o esforço contra-subversivo exigia uma profunda sincronia entre os atores internacionais e o governo afegão, o que também não se verificou. Em 2007, vieram a público as dissonâncias e desencontros entre Cabul e Washington. O clima de desconfiança entre ambas as capitais agravou-se significativamente durante 2010. Para isso, muito contribuíram as baixas civis causadas pelos bombardeamentos aéreos. As acrimónias agravaram-se pelas frequentes críticas públicas pouco simpáticas dirigidas a Karzai por parte dos responsáveis e da comunicação social norte-americana.
O fosso entre Cabul e Washington agudizou-se, ao ponto de Karzai acusar a NATO e os EUA de todos os problemas no país. Com todas estas dificuldades era difícil conduzir uma campanha vencedora. As brechas aumentavam no campo anti-talibã.
Acresce ainda a relativamente incompetente manobra contra-subversiva das forças internacionais, e das americanas em particular. Na grande maioria dos casos, não conseguiram estabelecer ligações fortes com os chefes tribais, um instrumento essencial da manobra contra-subversiva, e através deles atuar indiretamente sobre os rebeldes. Por incrível que possa parecer, não houve uma política concertada de aproximação aos chefes tribais pashtuns, quem mais podia minar a base de apoio dos talibãs. O controlo territorial das forças internacionais não conseguia ir muito para além das suas bases.
Uma outra peça deste puzzle explicativo prende-se com o Paquistão, o santuário da contra-subversão onde permanecia a liderança talibã, a base de retaguarda onde os rebeldes saravam as feridas, se reorganizavam e preparavam as investidas em território afegão. Era difícil as forças internacionais e o governo afegão, se não impossível, fazer progressos na luta contra os talibãs sem se verificarem mudanças no comportamento do Paquistão.
É incompreensível que Washington tenha dado ao Paquistão, entre 2002 e 2018, mais de 14 mil milhões de dólares em ajuda para combater o terrorismo e os rebeldes, situação que só se alterou em 2018 (Ward, 2018), quando o presidente Trump reteve cerca de 800 milhões de dólares em ajuda, se o Paquistão não começasse a fazer aquilo que Washington esperava que fosse feito.
As negociações que faltaram
O anúncio, em 2009, da retirada faseada das forças americanas do Afeganistão a partir de julho de 2011, e o início de um processo de transição a terminar em 2014, quando os afegãos passariam a assumir a responsabilidade pela segurança do seu país, era um indício claro do impasse a que tinha chegado a situação no terreno. Contudo, em vez de privilegiar no seu plano de redução de efetivos o processo político e as conversações com os talibãs, Obama optou pela estratégia militar, que passava por aumentar a capacidade das forças de segurança e defesa afegãs.
O resultado dessa opção foi dramático. O facto de não se ter negociado em tempo uma solução política, obrigou a que uns anos mais tarde se tivesse de negociar a retirada, como aconteceu em 2020 durante a Administração Trump, em condições tremendamente desvantajosas. Não sendo uma panaceia, a solução política negociada com os talibãs era a única alternativa realista ao descalabro.
O diálogo intra-afegão, onde se adivinhava que surgiriam os maiores problemas, deveria ter estado, desde o início, no topo da agenda. Isso exigia o envolvimento coordenado de múltiplos atores com alavancagem sobre as fações afegãs. Isto era possível, mas não foi feito. Uma solução política que envolvesse governo e rebeldes tinha necessariamente de envolver os países vizinhos. Precisavam de ser parte da solução, acima de tudo, o Paquistão e o Irão, assim como a Índia, Rússia, China e Arábia Saudita. Todos podiam de um ou de outro modo contribuir para a solução. Mas Washington nunca os envolveu. E todos necessitavam ser envolvidos.
O resultado desta inépcia foi a celebração de um acordo de retirada em fevereiro de 2020 entre Washington e os talibãs sem existir um processo de reconciliação nacional em curso, e sem estar acordada a fórmula governativa a adotar após a saída das forças internacionais. O diálogo intra-afegão estava inquinado à nascença. Enquanto o governo alimentava a esperança de que a nova Administração Biden revisse a decisão de retirar, os talibãs aguardavam pelo momento adequado para atuar, dada a vantagem militar que passariam a dispor após a retirada das forças internacionais, em especial das norte-americanas.
O resultado da falta de esclarecimento das elites políticas e militares norte-americanas criou as condições para que prevalecessem os objetivos estratégicos dos talibãs, ganhadores em toda a linha, começando pela retirada das forças estrangeiras. O diálogo intra-afegão terá de esperar por melhores dias, se as potências regionais conseguirem concertar esforços, o que é bastante duvidoso. A conjugação de todos estes elementos criou a receita para o insucesso.