Surgiu recentemente uma polémica sobre a social-democracia e os partidos políticos portugueses que nela se revêem ou que apresentam programas eleitorais que nela se enquadram. A coordenadora do Bloco de Esquerda afirmou que o programa eleitoral do partido era social-democrata, João Miguel Tavares concluiu que todos os principais partidos portugueses se revêem atualmente na social-democracia e Ricardo Paes Mamede escreveu um artigo sobre “Os equívocos de João Miguel Tavares sobre a social-democracia”. Francisco Assis e José Pacheco Pereira também contribuíram para o debate. Eu darei um contributo com uma breve incursão na história do movimento social-democrata na tentativa de responder à pergunta do título.
Os partidos sociais-democratas surgiram para representar a classe operária e os trabalhadores em geral, lutar pela sua emancipação e pelo fim do capitalismo que daria lugar ao socialismo. Inicialmente, a estratégia considerada adequada para atingir esse objetivo era a revolucionária, mas com o tempo e a repressão por parte dos Estados e governos da altura começaram a surgir vozes a defender uma estratégia reformista e gradual. Aproveitar as eleições para ganhar poder e assim iniciar a transição para o socialismo. Uma das vozes que elaborou e publicou sobre o tema foi Eduard Bernstein, dirigente do SPD (partido social-democrata alemão – partido referência do movimento social-democrata). Bernstein formulou teoricamente uma revisão crítica de várias teses marxistas e defendeu que no quadro do sufrágio universal (que era o voto masculino) e dada a superioridade ética do socialismo, os trabalhadores podiam usar as eleições, o parlamento e o governo para avançar legislativamente rumo ao socialismo. Segundo ele, o movimento (focado nas reformas) era tudo e o objetivo final nada. A revolução era desnecessária. Quando ele publicou as suas ideias foi confrontado por Karl Kautsky, outro importante teórico e político social-democrata. Kautsky, cuja visão teve mais apoio na altura, também defendia as reformas em benefício dos trabalhadores, mas considerava que o partidos sociais-democratas não deviam contentar-se com as reformas. Defendeu que a democracia só se pode realizar verdadeiramente no socialismo e com a vitória do proletariado. Segundo ele, os partidos sociais-democratas deviam ser partidos de classe e da revolução social. O socialismo não era o objetivo final mas o meio para a abolição de todo o tipo de exploração e opressão.
Desde essa altura a história da social-democracia foi de um afastamento contínuo em relação à sua versão original. Na Primeira Guerra Mundial, os partidos sociais-democratas abdicaram da sua perspectiva internacionalista, que defendia que os trabalhadores não deviam apoiar uma guerra imperialista entre potências capitalistas e apoiaram os governos dos seus países na guerra. Bernstein e Kautsky apoiaram inicialmente a guerra, arrependeram-se e saíram do SPD, regressando anos depois ao partido.
Foi só na conferência de Bad Godesberg, em Novembro de 1959, que o SPD mudou formalmente a sua orientação política e ideológica abandonando o marxismo e o objetivo de superar o capitalismo. Nesta época os partidos sociais-democratas estavam focados na defesa do pleno emprego e do Estado Social, que estava a ser desenvolvido em vários países europeus, com contributos de várias famílias políticas e perspectivas ideológicas, no quadro dos chamados “trinta gloriosos anos”, que foram décadas com taxas relativamente elevadas de crescimento económico, onde as relações comerciais desiguais com os países coloniais e ex-coloniais (as independências formais não acabaram com a exploração) e o medo que as burguesias nacionais tinham do movimento comunista desempenharam um papel fundamental.
A partir da década de 1970 e dos choques petrolíferos, com a estagflação (estagnação económica e inflação) e da entrada na época da ascensão do neoliberalismo, os partidos sociais-democratas foram-se tornando defensores da necessidade de adaptar (na prática reduzindo-o) o Estado Social, apoiando a globalização, a liberalização e as privatizações como forma de promover o crescimento económico. Passaram a apresentar-se como gestores do capitalismo dando-lhe uma “face mais humana”. Esta postura consolidou-se na década de 1990 com a chamada Terceira Via.
Portanto, a social-democracia numa primeira fase queria acabar com o capitalismo, na fase seguinte quis realizar reformas rumo aos socialismo, depois aceitou o capitalismo defendendo o Estado Social e o pleno emprego, posteriormente abandonou a ideia de pleno emprego e uma adaptação do Estado Social às exigências dos mercados internacionais e dos privados. Na prática, com o tempo, muitos partidos sociais-democratas tornaram-se partidos neoliberais.
Usando como metáfora a escravatura, podemos dizer que a social-democracia surgiu como o partido dos escravos defendendo o fim imediato da escravatura, depois passou a defender o fim gradual da escravatura defendendo a melhoria das condições de vida (educação, saúde) dos escravos até à sua libertação, numa outra fase aceitou a escravatura e disse que afinal era melhor a escravatura e bastava melhorar a condição de vida dos escravos até que se tornou no movimento que luta no máximo por mais uma sopa na dieta dos escravos ou que defende que os castigos mais severos aos escravos não regressem. Partidos que têm nomes originalmente anti-escravatura, mas que defendem a liberdade dos proprietários em terem escravos, que se opõem a medidas para acabar com a escravatura, defendendo na teoria a melhoria das condições de vida dos escravos e implementando na prática várias medidas que pioram a vida dos escravos.
Mas então, o que é afinal a social-democracia? Como vimos há várias versões históricas de um movimento político cujo percurso é de afastamento em relação à sua génese. A social-democracia apesar de continuar a ter apoio popular em diversos países foi derrotada com um “abraço de urso” pelo capitalismo. Em vez de transformar o capitalismo, foi transformada por ele. As visões que defendeu em cada fase histórica não se realizaram ou não foram sustentáveis. Podemos concluir que o movimento social-democrata teve um papel importante no apoio ao capitalismo, na procura de soluções para os seus problemas, na criação de condições para os trabalhadores (sobretudo dos países europeus) melhorarem as suas vidas e na oposição a movimentos que tentaram construir uma alternativa ao capitalismo (que era a meta original da social-democracia).