1.

A Constituição Portuguesa consagra, desde 1976, o direito à habitação, estabelecido no artigo 65.º, segundo o qual «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.» Foi também em 1976 que Portugal assinou o “Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas”, concluído em 1966 e cujo artigo 11.º vem reconhecer «o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes», em linha com o já afirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Que «toda a pessoa tem direito à habitação» é algo que foi declarado também na Carta Social Europeia Revista.

Estes e outros instrumentos sublinham que o direito à habitação constitui um direito humano. Dispor de uma habitação condigna é uma necessidade básica do ser humano e uma condição para ter uma vida digna, além de ser um requisito para o exercício de outros direitos fundamentais. Vários estudos têm demostrado existir uma ligação entre problemas habitacionais e problemas de saúde ou evidenciado a importância das condições habitacionais nos resultados escolares. Como canta Sérgio Godinho, «Só há liberdade a sério quando houver/A paz, o pão/habitação/saúde, educação» e estes direitos são interdependentes e indivisíveis.

Mas em que consiste, afinal, o direito à habitação? É o direito apenas a um tecto? É o direito a viver nas zonas mais caras do país? O debate não é meramente filosófico. Ao Estado compete, de acordo com o já mencionado artigo 65.º da Constituição, prosseguir políticas públicas que garantam aquele direito. Ora, o primeiro passo na concepção de tais políticas é definir os seus objectivos, o que pressupõe chegar a um entendimento sobre o que abarca o direito à habitação e que situações constituem uma sua violação.

2.

Na sua “Observação Geral n.º 4 sobre o Direito a uma Habitação Condigna”, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais veio clarificar que não se deve interpretar restritivamente este direito. Não se trata simplesmente de proporcionar uma morada ou um tecto que sirva de abrigo. Para o Comité, o “alojamento suficiente” engloba a disponibilidade de serviços, a habitabilidade, a acessibilidade física, a adequação em termos culturais, a localização, a segurança legal da ocupação e a acessibilidade económica.

Estando o direito à habitação intimamente ligado a outros direitos humanos, a adequabilidade da habitação exige a existência de estruturas essenciais à saúde, à segurança, ao conforto e à nutrição, tais como água potável, saneamento básico e instalações sanitárias, aquecimento, iluminação, ventilação, energia para cozinhar, meios de conservação de alimentos, sistemas de recolha e tratamento de lixo e serviços de emergência. Uma habitação só será condigna se garantir a segurança física dos moradores e lhes proporcionar um espaço que os proteja dos elementos (calor, frio, chuva, humidade, vento), dos perigos e de outros riscos.

Nas palavras da Lei de Bases da Habitação (artigo 14.º), o «direito à habitação compreende a existência de um habitat que assegure condições de salubridade, segurança, qualidade ambiental e integração social, permitindo a fruição plena da unidade habitacional e dos espaços e equipamentos de utilização coletiva e contribuindo para a qualidade de vida e bem-estar dos indivíduos».

Sendo um direito humano, o direito à habitação é universal, abrangendo as pessoas mais vulneráveis, designadamente, crianças, idosos, doentes e vítimas de catástrofes naturais. Estes (e outros) grupos desfavorecidos não podem ser discriminados no acesso à habitação, devendo até beneficiar de uma certa prioridade e de uma política de habitação que tenha em consideração as suas necessidades especiais. Isso mesmo está previsto na já mencionada Lei de Bases, que define que a política de habitação se destina às pessoas e às famílias e, por isso, integra medidas especialmente vocacionadas para a promoção da autonomia e independência dos jovens, para a garantia de condições físicas de acessibilidade para os cidadãos com deficiência, para a garantia de habitação adaptada às condições de saúde e mobilidade dos idosos e para a protecção extraordinária de pessoas e famílias em situação de especial vulnerabilidade, como a das pessoas sem-abrigo.

No conceito de habitação condigna cabe igualmente o requisito de que se situe onde existem oportunidades de emprego, escolas, serviços de saúde e outras estruturas sociais. Assegurar a existência de tais equipamentos, bem como de uma rede de transportes, é, segundo a Lei de Bases, obrigação do Estado e integra a sua missão de garantir o direito à habitação. A mesma lei tem um artigo relativo ao direito à escolha do lugar de residência, conferindo-o aos cidadãos de acordo com as suas preferências e necessidades, mas também segundo as suas possibilidades e sem prejuízo dos condicionamentos urbanísticos.

Por falar em condicionamentos urbanísticos, note-se que um outro aspecto associado ao direito à habitação é o do respeito pelo meio cultural. Como estipula a Lei de Bases da Habitação, «a reabilitação urbana integra a política nacional de habitação», porque a arquitectura, os vários edifícios e a forma como são construídos, o estilo das ruas e os vários espaços criados fazem parte do património cultural, que é fundamental na construção da identidade. Assim, a construção ou a reabilitação do parque habitacional tem de garantir que a sua beneficiação não compromete a dimensão cultural da habitação.

Ainda a propósito de condicionamentos urbanísticos, convém ter em mente que estes constituem, em algumas zonas, restrições à oferta, que levam a que o alojamento seja tão caro. Ou seja, o valor de uma habitação depende de uma série de factores e o facto de as casas serem muito caras em certa localização pode decorrer da sua escassez e não de uma superioridade nas suas condições de habitabilidade, na oferta de serviços nas redondezas ou na acessibilidade física. Já o pai da Ciência Económica, Adam Smith, havia constatado que a água, apesar de absolutamente essencial à vida, é barata, enquanto algo completamente supérfluo como os diamantes é caríssimo.

O consumo do bem habitação pode ocorrer através da propriedade ou do arrendamento. Não será este o lugar para explorar os vários factores (financeiros, demográficos, culturais, etc.) que explicam a opção por uma ou outra forma de ocupação. No entanto, vale a pena referir que a “casa própria” está associada a um sentimento de maior independência e segurança, nomeadamente, porque, sendo um bem duradouro, os imóveis constituem uma forma de deter riqueza e são, tipicamente, o maior activo que as famílias possuem. Em 1976, uma Resolução do Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro entendia mesmo que era «elementar princípio da política habitacional o acesso à compra de habitação própria por todas as famílias, independentemente do nível de rendimento».

O direito à habitação não integra o direito à propriedade, mas pressupõe que, seja qual for a forma de ocupação, deve ser assegurado um certo grau de segurança e protecção legal contra despejos forçados e outras ameaças. Isso não se confunde, porém, com a impossibilidade de fazer desocupar uma habitação que esteja ilegal ou indevidamente ocupada, o que, aliás, o artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação prevê.

Finalmente, a acessibilidade à habitação tem igualmente uma dimensão económica, relacionada com os custos. O conceito de habitação acessível tem motivado um debate académico, havendo diferentes perspectivas sobre o seu significado. Sem entrar na discussão, dir-se-á apenas que o direito à habitação requer que os encargos financeiros com a habitação não coloquem em causa a satisfação de outras necessidades básicas.

«Incumbe ao Estado estabelecer a criação de um sistema de acesso à habitação com renda compatível com o rendimento familiar», determina a Lei de Bases. Os detalhes de tal sistema são, obviamente, deixados para outra legislação que não uma lei de bases. Esta apenas fixa os princípios a que a política de habitação deve obedecer e elenca os instrumentos de que se pode socorrer, que incluem medidas legislativas de regulação, tributárias e fiscais, de apoio financeiro e subsidiação e de promoção e gestão da habitação pública. Logicamente, a sua concretização será depois o resultado de preferências e posicionamentos ideológicos quanto tema.

3.

Não obstante, independentemente da visão que se tenha do mundo, a definição de uma política pública de habitação deverá basear-se em conhecimento e em informação. É a própria Lei de Bases da Habitação, no capítulo que dedica às políticas públicas, que estipula que é preciso fazer periodicamente um diagnóstico da situação do país em matéria de habitação, que identifique as principais carências quantitativas e qualitativas. Os parágrafos anteriores esperam ter contribuído para esse exercício de identificação, que não deve ignorar também que o bem habitação tem características muito especiais que tornam o funcionamento do seu mercado igualmente especial.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.