1. O primeiro socialista Presidente do Conselho Europeu parte com o crédito do seu histórico de construtor, mas o mundo está perigoso, a União Europeia (UE) enfrenta decisões existenciais e a sua família política é largamente minoritária na instituição que o elegeu. O que poderá António Costa tentar e o que poderá conseguir.

2. As funções do Presidente do Conselho Europeu estão entre quase nada e quase tudo. “Preside”, “dinamiza”, “assegura a preparação e continuidade dos trabalhos”, “facilitar a coesão e o consenso”, “representação externa da União”, dizem os Tratados, poderia ser uma função basicamente organizativa, própria de um funcionário público altamente qualificado. Mas pode, e deve, ser muito mais, procurando as decisões políticas que minimizem a divergência entre os diferentes interesses nacionais em presença e maximizem a convergência entre esses e o interesse comum europeu. António Costa terá sido escolhido por quem testemunhou as suas qualidades neste campo.

Entretanto, tais funções são exercidas numa rede de tensões complexa. Entre o Conselho de Assuntos Gerais, a cooperação com a Presidente da Comissão, o papel da Alta Representante em matéria de representação externa e o reporte ao Parlamento Europeu, a sua margem de manobra não é território firme à partida: terá de ser conquistada no dia a dia.

A tendência passada de Ursula von der Leyen para alargar informalmente as suas competências (e a necessidade de corrigir esse desvio), bem como uma previsível mudança de sensibilidade ao estado global do mundo do anterior para a atual Alta Representante, colocam pressão no jogo de cooperação competitiva em que se moverá António Costa.

Entre quase nada e quase tudo, o novo Presidente conquistará o seu espaço, sabendo que, se há problemas de fundo na União pelos quais pouco poderá fazer, há outras matérias decisivas nas quais, esperamos, tentará suavemente introduzir alguma razoabilidade. Vamos por partes.

3. Não é por acaso que reafirmamos sempre que o nosso europeísmo é crítico. Somos europeístas, não desistimos da UE (seria irresponsável desistir da nossa específica organização regional num mundo onde o perigo de estar sozinho é crescente), mas sabemos que é necessário diminuir o peso do neoliberalismo na ideologia implícita de muitas opções das instâncias comunitárias.

António Costa mostrou saber resistir à tentativa de interferir na política nacional a partir de Bruxelas numa base ideológica estreita, quando venceu a batalha contra as sanções que os falcões queriam impor a Portugal, em 2016, por incumprimento dos critérios quanto ao défice e à dívida pública. Multas e suspensão dos fundos comunitários, a aplicar durante a governação de António Costa, por um incumprimento relativo ao período governativo de Passos Coelho, era o que pedia o PPE (o grupo europeu de PSD e CDS). O problema do neoliberalismo incrustado é, contudo, mais vasto. Vejamos o exemplo do papel do Banco Central Europeu (BCE).

Sempre que cai no debate público alguma decisão do BCE que pode conflituar com orientações de política pública dos Estados-Membros, ou da própria UE, a justificação padrão é a função que os Tratados lhe cometem. Foi o caso com a subida acentuada das taxas de juro como estratégia para combater a inflação decorrente da guerra na Europa, em choque com os esforços de vários governos para proteger as famílias da perda de rendimentos (designadamente, energia e bens alimentares). Apresentando a estabilidade dos preços como a sua função primária, isso é confundido com o que seria uma função única ou cega.

Ora, na verdade, o que os Tratados estipulam é que, também, “apoiará as políticas económicas gerais da União tendo em vista contribuir para a realização dos objetivos da União”, incluindo o pleno emprego, a proteção social, a coesão económica, social e territorial, o progresso científico e tecnológico, a justiça social… Isto quer dizer que o mandato do BCE não pode ser reduzido a uma visão monetarista da governação.

Não existia uma fórmula simples para lidar com a inflação, mas a visão estreita da situação resulta diretamente dos pressupostos ideológicos subjacentes. Este é um exemplo concreto de que as ideologias têm consequências práticas na política europeia, o que não será revertido por iniciativas positivas, mas localizadas (como é o caso do recente relatório Draghi, que chama a atenção para a necessidade de mais competitividade precisar de mais e não menos inclusão social).

Esse neoliberalismo implícito desconsidera as consequências gravosas dos excessos de desregulação, descura os efeitos da submissão da economia real aos interesses da especulação financeira, e das privatizações descontroladas que retiram capacidade efetiva aos poderes públicos, degrada a condição dos trabalhadores pela desregulação intensiva do mercado de trabalho.

Os esforços para reequilibrar este cenário – designadamente, o Pilar Europeu dos Direitos Sociais – não reverterão só por si o já longo “tsunami” ideológico. Para um socialista democrático, esta é a grande questão do nosso europeísmo. Ora, o Presidente do Conselho Europeu não poderá fazer grande coisa para mudar significativamente este pano de fundo da política europeia. Até porque lhe faltam aliados.

4. Há, não obstante, matérias decisivas para o nosso futuro comum que podem beneficiar da racionalidade política e da sageza de António Costa. A UE falhará aos cidadãos se não encontrar respostas robustas para o seu alargamento, para a definição do seu papel no mundo, para as transições climática e digital articuladas e socialmente justas – e se não encontrar os novos recursos próprios apropriados a enfrentar e vencer esses desafios.

O novo Presidente do Conselho Europeu mostrou, anteriormente, compreender bem cada uma dessas facetas da dinâmica europeia e deu sinais de poder introduzir alguma sensatez na abordagem de algumas dessas matérias. Menciono duas.

No tocante ao alargamento, proliferam as visões ligeiras que admitem que ele possa ocorrer à sombra de um desleixo dos critérios definidos para a adesão, pondo a “vontade política” voluntarista à frente das exigências democráticas e socioeconómicas que garantam a coerência do projeto. António Costa deu, a seu tempo, sinal de que tal movimento não pode ser bem-sucedido sem a transformação do funcionamento da UE, e que não pode ser um alargamento desordenado que faça perigar a consistência de todo o edifício, que troque os valores fundamentais pela pressa e arrisque o desperdício da experiência histórica deste projeto singular.

Quanto ao papel da União no mundo, se a autonomia estratégica (competitividade, energia, defesa) é essencial para que a UE não seja um infante ingénuo num mundo de gigantes agressivos, é crucial entender que a questão existencial é a questão da guerra e da paz. Ora, aí, nem toda a propaganda é suficiente para nos fazer ignorar questões simples: o que fez a UE para evitar que se chegasse à invasão russa da Ucrânia, atuando na compreensão de que só a segurança comum é segurança de todos? O que fez a UE para evitar que se chegasse à situação atual no Médio Oriente? O que faz a UE para evitar a proliferação de abordagens claramente incoerentes aos dois casos, onde aqui se apela ao direito internacional e ali se esquecem as suas exigências?

Devemos ter a esperança que um António Costa que, na sua juventude, mostrou que lhe fazia sentido a mensagem “deem uma oportunidade à paz”, e que entendia essa mensagem para lá das fronteiras partidárias, seja capaz de levar as lideranças europeias a compreender que, se temos de estar preparados para a guerra neste mundo real em que vivemos (e não adormecermos todos os dias acomodados à nossa dependência do “amigo americano”), também temos de ser capazes de esforços reais e concretos para fazer a paz (e é entre inimigos que é preciso fazer a paz), onde não confundamos conferências de paz com iniciativas onde só são bem recebidos os aliados de um dos lados. Ignorar a questão limite, que é a questão da guerra e da paz, seria, afinal, suicidário.

5. A situação de António Guterres como Secretário-Geral da ONU mostra que os bloqueios endógenos de uma organização pesam mais na dura realidade que o génio de uma liderança. Acredito, contudo, que António Costa conseguirá, lidando com o labirinto institucional, reunir na UE as inteligências e as vontades políticas necessárias para nos aproximarmos um pouco mais do sempre fugidio ideal europeu da prosperidade partilhada.