Há dias a TVI pôs no ar uma reportagem sobre o IRA, grupo de Intervenção e Resgate Animal. Nela, transmite selectivamente partes de um vídeo da organização, omitindo que se trata de uma rábula, reforçando de modo pouco transparente uma imagem muito agressiva da actuação dos seus membros.

Fá-lo de modo gravemente acusador, falhando, muito além do que pode caber dentro da esfera do “erro” ou da “desatenção”, o que são requisitos incontornáveis de conduta deontologicamente adequada no jornalismo. Não pode acontecer. Não é em si mesmo preocupante que um grupo de activistas aja em cima do risco da legalidade, por causas consensualmente justas, ou até apenas fracturantes, desde que se aceite os riscos envolvidos.

A vida em democracia e em liberdade é um jogo sério cujas regras não estão nunca inteiramente fixadas e fora da esfera da contestação. Joe Biden também chamou terrorista ao Julian Assange. E há mais anos tentou-se desmantelar a Greenpeace classificando-a como organização terrorista. Ambos agiam a pisar o risco, ou mesmo à margem da lei? Sim, mas sabemos bem que o uso da palavra “terrorismo” foi nestes casos instrumental e, na verdade, bastante indigno.

Dito isto, convém não perder o foco. A PJ está a investigar o grupo por suspeitas de terrorismo, sequestro e assalto à mão armada. Há de facto um problema com este outro IRA, que cativou, talvez inadvertidamente, a simpatia de largas dezenas de milhar de cidadãos (164 mil seguidores da página Facebook).

O problema nem é tanto uma ideia de IRA dos animais, que agisse por meios não convencionais para encontrá-los e resgatá-los quando alvo de crueldade e maus tratos ilegais. Fazendo fé na veracidade do que é noticiado para lá da lamentável peça da TVI, o problema é o que este movimento se permite: uma composição do grupo que se interpenetra promiscuamente com forças de segurança pública e uma linguagem de milícia intimidatória.

Para prevenir ‘achismos’ e escaladas na presunção de factos, faço questão de citar. Em peça do “Observador”, com mais de um ano e republicada nestes dias, lê-se: «Têm em média 35 musculados anos, muitos são casados, outros têm filhos, todos têm empregos diurnos o mais díspares possível: são seguranças privados, gerentes de ginásios, polícias, contabilistas e técnicos administrativos.» Lê-se ainda: «”Hoje recebemos nova fotografia da polícia municipal a dizer onde é que ele estava. Não é de forma oficial, mas as autoridades apoiam-nos. E as câmaras municipais, através dos veterinários, também. Fazemos o dirty job, aquilo que eles não podem fazer”.»

Isto deve ser averiguado por quem de direito, pois há aqui matéria de preocupação como nunca houve em supostos eco-terroristas ou okupas, por exemplo, por mais claro que seja que agem de forma não convencional e até infringem alguma lei da República.

Não é haver um grupo de cidadãos IRAdos com os maus tratos de animais, que os denunciem às autoridades, mesmo pisando o risco em termos jurídicos para alcançarem o seu objectivo, na verdade pressionando a opinião pública e o estado de direito, o que constitui perigo. É antes, sob esse pretexto, organizarem-se milícias, com a cumplicidade de forças de segurança e de autoridades do estado, milícias dispostas a atropelar direitos civis, exercer intimidação, por exposição pública ou mesmo por violência, e reconhecê-lo e promovê-lo.

Parece que é apenas uma diferença de grau, mas não, é mesmo uma diferença qualitativa: em vez de sensibilizar e pressionar o estado de direito, é substituí-lo no que deve ser a sua acção e desprezar o seu modo de funcionamento. Com a agravante de haver autoridades envolvidas, sabotando o estado de direito que integram.

É intolerável agentes da PSP, da GNR, de qualquer outra força de segurança, militarizada ou não, comprometerem-se com práticas justiceiras, de justiça pelas próprias mãos, à margem da lei. Nem a título individual, mesmo nas horas de lazer, muito menos a título institucional, em cumprimento de funções. A preocupação com esta linha vermelha pode parecer um detalhe na questão do IRA, mas verdadeiramente o IRA é que deve ser perspectivado como um detalhe de um fenómeno mais generalizado envolvendo autoridades policiais.

Ainda há pouco tempo a mesma lógica justiceira, baseada na força musculada intimidatória e na denúncia em redes sociais, levou um sindicato de polícia a publicar no Facebook fotos da captura de detidos que haviam logrado escapar-se e a mantê-las apesar do protesto social e contrariando indicação explícita da tutela. O tom de desafio escalou a um nível inaudito, não se inibindo de mencionar o nome de cidadãos. Esta contaminação crescente entre populismo e forças de autoridade que transbordam os limites do estado de direito tem de ser rápida e severamente anulada.

Haverá um ingrediente de rábula na maneira como este IRA dos animais se apresenta publicamente e não vou comprar a especulação de que é com a verdade que me enganas.  E considero sinistro o fundador dos IRAdos defender uma esterilização generalizada da população animal e a restrição do direito a ter um animal de companhia a quem por ele possa pagar muito. Mas, opiniões são opiniões e discutem-se, factos são factos e averiguam-se.

Sei que o IRA nega as acusações de agir à margem da lei e de dar guarida a ligações com grupos de extrema-direita. Espero que o estado de direito investigue o que há a investigar, sobretudo no que respeita ao que o próprio estado de direito se deixou comprometer neste movimento. Mas sem ceder a outros pretextos.

Desde logo, e em primeiro lugar, o pretexto da intransigência contra o activismo pelo respeito pela dignidade dos animais. Os maus tratos a animais devem ser penalizados e a pressão social para acabar com eles é bem fundamentada. Caricaturar o animalismo — por exemplo, Daniel Oliveira a dizer que estamos tão longe da natureza que amamos cães como se fossem filhos! — não ajuda, é argumentativamente tão lastimável como chamar “ideologia de género” a quem luta pela igualdade de género.

Era o que mais faltava que a defesa de direitos dos animais se tornasse um lugar de intolerância persecutória, como se viu abater-se sobre o PAN, sobre os movimentos anti-touradas, sobre ambientalistas, vegetarianos, veganos e toda a fauna de animalistas.

Em segundo lugar, a acção musculada e justiceira estar a ganhar terreno dentro do activismo e das manifestações de rua não pode nunca servir de pretexto para depreciar e censurar este tipo de intervenção, na verdade, tão imprescindível como o estado de direito e os seus poderes públicos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.