Há pouco mais de uma semana, o Congresso americano aprovou uma série de novas sanções à Rússia, penalizando a sua invasão da Crimeia e a interferência nas eleições americanas de 2016, contra os desejos de Trump que, não vetando a iniciativa legislativa dos congressistas, veio contestá-la publicamente. Por sua vez, Vladimir Putin não hesitou em responder ao que considerou ser uma “acção” que “não foi provocada por nada” expulsando 755 diplomatas americanos do seu país.
Depois de ter reagido às sanções impostas pela Administração de Barack Obama no final do ano passado com uma incaracterística passividade – aparentemente por Michael Flynn, que na altura se preparava para ser Conselheiro de Segurança Nacional de Trump e que fora anteriormente pago pelo Kremlin, parecendo cada vez mais claro que se tratava de um seu agente no coração da equipa de Trump, lhe ter garantido que o seu chefe iria levantar as sanções quando tomasse posse – Putin afirmou agora que “chegou o tempo de demonstrarmos que não vamos deixar nada sem resposta”.
Tendo em conta que os Estados Unidos não têm 755 diplomatas na Rússia, a medida irá acima de tudo afectar os cidadãos russos que trabalham para a embaixada americana, numa prova de que se trata essencialmente de um acto de propaganda, visando o principal objectivo do regime: manter o poder da quadrilha que o controla, para que os seus membros e dependentes possam continuar a enriquecer com o sistema corrupto que ergueram e sustentam.
Com as dificuldades económicas que o país e a sua população atravessam, Putin e os seus cúmplices precisam como de pão para a boca de parecer “fortes” no plano internacional, para assim explorarem o fervor patriótico russo e a lendária predisposição do seu povo para passar fome em prol da “grandeza” do Império. E até o facto de serem russos os principais prejudicados com a medida de Putin serve este propósito, ao lhe permitir usar o “provocador” externo como o bode expiatório para as dificuldades que as suas próprias decisões acarretam (o mesmo, como explica Julia Ioffe, se passou com a famosa questão da proibição da adopção de crianças russas por famílias americanas, uma decisão de Putin pela qual culpou os EUA).
Além do mais, Putin usa as sanções americanas para fortalecer o seu poder interno ao recorrer a um truque já habitual em si: procurar dividir os Estados Unidos e os seus aliados europeus, permitindo-lhe passar uma imagem de manipulador diplomático invencível junto da população, e pintar (sem grande esforço) o “Ocidente” como uma colecção de líderes fracos e sem inteligência para o enfrentar, o que por sua vez lhe permite apresentar a democracia ocidental como a razão dessa fraqueza, e como tal um argumento a favor do seu governo autoritário; com os países europeus receosos dos custos que as sanções americanas à Rússia terão nos seus próprios sectores energéticos, a decisão do Congresso americano está já a gerar uma certa tensão dos dois lados do Atlântico.
Acresce que, neste caso concreto, Putin vê a divisão a alastrar-se ao interior dos próprios EUA: não só Trump não desejava o agravamento das sanções, como o Congresso estabeleceu que o Presidente não as poderá levantar sem a aprovação maioritária do ramo legislativo, sinal claro da desconfiança que Trump gera na classe política americana, especialmente no que toca à relação com a Rússia. Divisão essa que as declarações de Dimitri Medvedev procuram explorar, largando uma casca de banana em que Trump fez o favor de escorregar.
Este último ponto é importante para se perceber o que Putin quer: um mundo caótico ajuda-o. Os seus inimigos não se entendem acerca de como o combater; o clima de conflito generalizado permite-lhe fazer os russos esquecerem-se de que estão a empobrecer e unirem-se perante um mundo “hostil”; e se todas as confusões que o presidente russo ajuda a fomentar (especialmente no Médio Oriente) ajudarem a manter os preços das fontes de energia de que a oligarquia russa depende, melhor.
Assim se percebe os seus esforços de prolongamento da guerra na Síria (ajudando Assad a sobreviver, e deixando o ISIS a salvo), como assim se percebe o apoio financeiro e propagandístico a partidos extremistas e autoritários na Europa, e também o apoio a Trump nos EUA: é claro que se Trump, uma vez eleito, eliminasse sanções que afectam a capacidade do bando que governa a Rússia aceder ao dinheiro que roubou no seu país mas armazenou no Ocidente, Putin agradeceria.
Mas quando embarcou na operação de “influência” contra as eleições americanas, Putin esperava uma vitória de Hillary Clinton, e o seu propósito era essencialmente descredibilizá-la, e com ela o sistema americano. Com Trump eleito, no entanto, este último objectivo está mais do que assegurado: metade do país acha-o um criminoso autoritário e irresponsável que não sabe o que faz, e a outra culpa “o sistema” por conspirar contra ele (o que só se agravará se e quando ele for alvo de um processo de impeachment).
Com Trump eleito, e tendo em conta as peripécias da sua governação, aconteça o que acontecer, Putin terá sempre motivo para dizer que a democracia americana não é menos disfuncional e corrupta que o seu próprio regime, justificando-o. Com mais sanções ou menos sanções, Putin já conseguiu minar a confiança dos americanos e dos europeus nos seus sistemas de governo, e a imagem destes junto da população russa. Ou seja, aconteça o que acontecer, já tem o que queria.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.