Há cem anos, em abril, iniciava-se em Vila Nova de Milfontes o Raid Aéreo Portugal Macau. Foi neste mês primaveril que começou o que seria uma das maiores aventuras da aviação portuguesa e que uniria em seu torno a população, sem olhar à condição social ou género.
No dia 7 de abril, e depois da indefinição relativamente ao ponto de partida da viagem, inicialmente apontado para a Amadora, Brito de Pais, Sarmento de Beires e Manuel Gouveia partiriam para o sobrevoo que desafiava as condições científicas e técnicas então conhecidas.
Portugal vivia em franca convulsão, onde se multiplicavam greves e a agitação social era a regra do dia. Saído da Primeira Guerra Mundial, e tendo conseguido manter o Império Colonial, a situação interna era dramática. Portugal não conseguira conceder à população as promessas da República, entre estas, um país moderno. A participação na guerra agravara a difícil situação económica do país e o desejo internacional pelo Império Colonial português era cada vez mais evidente.
A classe intelectual portuguesa debatia-se com esta questão de se ter tornado num país secundário na Ordem Internacional, apesar de toda uma história de descoberta que tinha feito de Portugal um dos países mais avançados e com mais conhecimento acumulado. O cosmopolitismo do país há muito desaparecera e havia um ambiente de desmobilização nacional, num período em que cresciam as ideias nacionalistas.
Foi neste contexto conturbado, e depois de outras tentativas de quebrar limites e chegar a territórios onde a aviação ainda não tinha chegado, que estes três homens, também eles militares durante a Primeira Guerra Mundial, delineiam este grande empreendimento de ligar por via aérea Portugal e Macau.
Da preparação à realização
Este raid recebe a atenção de boa parte da população. É assim que se conseguem reunir os fundos para este empreendimento. A população corresponde e entre os fundos dos residentes em Portugal e as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, onde se destaca, por exemplo, a do Brasil, conseguem-se reunir os fundos que permitem continuar o sonho. Maria do Céu Brito de Pais, irmã de um dos protagonistas da aventura, conduzirá boa parte dos esforços na recolha destes fundos, tornando-se mesmo na “madrinha” do voo.
Durante o raid, os aviadores e o mecânico que os acompanha irão recebendo o dinheiro que lhes permite continuar a viagem. Fazem-se bailes, récitas, quermesses, desfiles, jogos de futebol e até um rali, para além das subscrições promovidas pelos jornais de então. O ambiente em torno do projeto é festivo, apesar da situação da aviação e dos aviadores se degradar ainda durante esta viagem aérea.
A equipa que executa o raid é parca nos gastos e audaciosa nos feitos. Enquanto a aviação portuguesa e, em particular, Sarmento Beires, Brito de Paes e Manuel Gouveia, com o apoio de Francisco de Sousa, preparam as questões técnicas de voo, politicamente agilizam-se os passaportes diplomáticos e as autorizações de sobrevoo, e inicia-se o processo de recolha de fundos para o raid. Em termos de orçamento tudo começara com os 100 000$00 disponibilizados por Brito de Paes, mas era preciso muito mais. O governo apoiaria a viagem, mas não orçamentava a viagem.
Mais tarde, quando os aviadores se cruzam nos ares e nos territórios com aviadores de outros países, são vistos como corajosos, mas também loucos. Quem empreenderia um raid deste tipo apenas com um avião, adaptado das lides da guerra a um raid civil, antiquado e de carlinga aberta, apenas com uma equipa de três pessoas? É notória a forma elogiosa como são recebidos pelos representantes das entidades políticas onde têm que parar.
Na viagem perde-se o Pátria I, ainda a caminho, em Budhana, na Índia. Logo em seguida, nova mobilização. A população corresponde e seguem os fundos para a aquisição do Pátria II. Os desafios eram enormes em céus nunca antes atravessados. Um pequeno e distante país insistia em marcar uma travessia entre Portugal e o território sob sua administração, mais distante, Macau, excluindo Timor Leste, que esteve ligado à administração portuguesa de Macau até 1896. O pretexto, a soberania sobre esse distante território.
Macau, o destino atribulado
Neste voo ressaltam dois aspetos conjunturais de enorme importância. Por um lado, o contexto nacional atribulado e a vontade de se colocar um marco que colocasse Portugal e a aviação portuguesa a ombrear com os países mais desenvolvidos.
Por outro lado, um contexto internacional de corrida aos ares e aos impérios coloniais, bem como, uma relação entre Portugal e China que esfriava, ao passo que ambas as repúblicas avançavam, e, finalmente, um país que, apesar de tudo, conseguira manter um nível de relacionamento internacional que lhe permitia o sobrevoo de grandes extensões e diversos territórios políticos.
Para Portugal, a questão imperial mantinha-se como foco da política portuguesa. A participação na Primeira Guerra foi inúmeras vezes justificada com a vontade de manter o Império, embora muitos outros fatores políticos, também de índole interna, tenham determinado a beligerância portuguesa. Para a China, os territórios ocupados na China por outras potências estrangeiras tornam-se um incómodo. A República chinesa construíra o seu discurso político em cima de objetivos de modernização e progresso do país e, em simultâneo, de afirmação de soberania.
As Repúblicas portuguesa e chinesa, que tinham caminhado lado a lado em Macau, nomeadamente, através da imprensa periódica como é o caso do “Echo Macaense”, acabam por quase incompatibilizar-se. Portugal procurava construir um porto de águas profundas e ver reconhecidas as águas territoriais de Macau. A China procurava manter Macau como um território isolado e sem águas territoriais. É neste contexto que ocorre o voo e que, curiosamente, este acaba por ser bem recebido em Cantão e efusivamente em Hong Kong e Macau.
É, pois, numa teia complexa de corrida à tecnologia e afirmação nacionalista que o raid ocorre, mobilizando o povo português, a quem Sarmento Beires agradecerá inúmeras vezes nos seus livros e cuja presença podemos detetar no seu “Portugal a Macau (A viagem do Pátria), reeditado recentemente sob a coordenação de Isabel Morujão e Rita Pina Brito.
O fim da aventura
Finda a ventura e recebidos em apoteose por onde passavam, o brilhantismo deste feito vai perdendo o seu lugar na memória coletiva. Vários fatores contribuíram para o seu apagamento. O mais relevante, a oposição de Sarmento Beires à Ditadura Militar, a sua deserção do Exército Português por recusa a acatar as ordens dos ditadores.
A morte prematura de Brito Paes e o processo disciplinar a Cifka Duarte, responsável pela aeronáutica portuguesa que apoiara este projeto, por não conter a insatisfação do grupo de aviação que liderava contra a permanência da Ditadura Militar no poder, tornaram este evento numa celebração incómoda para o Estado Novo. As “atividades subversivas” de Sarmento de Beires, mesmo em contexto de exílio e que duraram até à sua reabilitação, em 1972, apagaram a viagem da memória coletiva.
Sarmento Beires morre após o 25 de Abril de 1974, conhecendo a plena liberdade. Ele que sempre acreditara que o povo português almejava o progresso, a liberdade e o desafio para a superação. Este centenário também entronca nas causas e consequências de uma Ditadura Militar que deu origem ao Estado Novo. Duas formas de ditatura que se entrelaçam numa ideia de controlo sobre as liberdades coletivas e individuais.
Cem e cinquenta anos depois, vivemos tempos desafiantes. Os extremismos e nacionalismos tomaram conta do quotidiano, a tecnologia volta a ser o mote de competição entre potências e o mundo assiste a uma reorganização da Ordem Internacional. Portugal volta a estar numa conjuntura interna e externa complexa. A pergunta é: como serão as próximas décadas e de que forma a reabilitação da memória nos pode ajudar a nos reencontrarmos.