“Mais do que me magoar pela confiança traída, envergonha-me”. Quando este sábado ouvimos António Costa começar o que tinha a dizer ao país teremos sentido comoção sincera e o resto de uma perplexidade ainda não digerida pelo próprio.

Enxovalha o primeiro-ministro envelopes de dinheiro dissimulados em livros e em outros esconderijos serem encontrados no gabinete do seu chefe de gabinete, no palácio de São Bento, coração das instituições democráticas desta República. Enxovalha ouvir o advogado do senhor Vítor Escária dizer publicamente “ser fácil de explicar” o dinheiro, que vem de negócios e assuntos nada que ver com a função. Até mencionou umas aulas dadas em Angola por este consultor. Como se a única coisa relevante a considerar não fosse por que levou envelopes de dinheiro para ali e escondidos.

Isto tem de envergonhar, sobretudo pela consciência de falta de controlo, que Costa devia ter tido sobre o sucedido tão próximo de si e não teve. E também pela consciência de perda de controlo sobre o que se vai seguir. Percebe-se que não restava a Costa alternativa à sua demissão. Por razões políticas, apenas razões de insustentabilidade política.

Mas, lamentavelmente, as razões que António Costa começou por dar foram outras, também ele estar sob investigação, desviando o foco da responsabilidade política.  Devia demitir-se, obviamente, mas não por uma suspeita, que ainda nem sequer havia ganho forma. E ainda menos formada agora que se sabe do colossal engano do Ministério Público na transcrição de uma escuta que, afinal, não o menciona.

Pelo menos nisto, António Costa tem estado bem. Pediu que não se caísse na armadilha de criticar o Ministério Público. Se não aceitarmos o funcionamento da justiça, por falível que seja, e entrarmos em derivas golpistas, é que caímos no abismo. Dizer isto não diminui em nada o assombro com os erros do ministério público e a urgência de uma reflexão sobre condições exigíveis de fiabilidade.

Mas há um grande “mas” nisto tudo. Que confiança era esta que agora António Costa sente traída? Não foi a confiança de quem governou rodeado por amigos, de quem não conseguiu confiar o suficiente além da lógica do “inner circle”? A confiança pessoal terá sido traída agora, mas, a confiança política começou a ser traída muito antes. E esta diferença tem de ser sublinhada. Precisamente porque a confiança política não deve assentar na confiança pessoal. Uma democracia madura não atalha a construção de confiança política indo buscar os amigos de peito, da escola, dos jantares, até dos familiares.

Governos e círculos de poder constituídos a partir da amizade – do estafado familismo amoral de que falava Edward Banfield –, estreitam escolhas e empobrecem a qualidade da governação. Não fazem justiça à inteligência e saber existentes no país, sequer no próprio partido ainda liderado por Costa.

Costa envergonha-se agora do seu próprio chefe de gabinete, mas manteve João Galamba no Governo quando não envergonha menos este ministro sobreviver politicamente ao sinistro episódio com Frederico Pinheiro, outro traidor de confiança pessoal, mas, realmente, talvez mais vítima de traição de confiança política.

E que faz António Costa diante desta obstinação de Galamba em prosseguir mesmo depois da demissão do chefe de governo? Será que António Costa tem noção das consequências políticas de levar João Galamba às audições parlamentares de debate do orçamento de estado? E que essa é uma responsabilidade política por que tem de responder, apesar de se ter demitido? Será necessário explicar que Galamba ir aí dizer que não se tenciona demitir, que não vê em causa as condições políticas para continuar a governar desafia a vontade política e, se calhar, até o bom senso de eleitores não menos melindrados que Costa e sem nenhuma das suas responsabilidades?

Não conhece Costa a lição de Max Weber de que a ética da convicção, seja ela qual for (e que pouco interessa saber) não deve sobrepor-se à da responsabilidade? E que a responsabilidade é para com um regime em vias de degradação acelerada?

Eu quero acreditar na inocência de Costa. Louvo o seu desprendimento. Mas, fere o seu gesto louvável a flagrante contradição de persistir em manter Galamba, uma, duas vezes, além de toda a razoabilidade. Nem sequer devia sentir-se em condições políticas de não deixar cair um ministro que devia ter deixado cair antes, mas que pôde manter obstinadamente enquanto ele próprio não caiu. Costa tinha e tem a obrigação de perceber que esta obstinação melindra as instituições e arrasta o regime para uma zona perigosa. Queremos celebrar os 50 anos de Abril à beira do abismo? Alguém neste país tem o direito de se fazer valer politicamente a esse ponto?

O optimismo de António Costa foi uma forma de resiliência durante os seus anos de governo. Contudo, entre o primeiro e o segundo mandato é como a diferença do dia para a noite. A travessia pelos anos difíceis de minoria, pressionado pelos partidos à esquerda, durante a Gerigonça, talvez não tivesse alcançando sucesso sem essa força de manter o sorriso e seguir em frente de Costa, construtivo, sem ressentimentos. Para o bem do país, que precisava de se reencontrar económica e socialmente. E houve tragédias, pandemias, crises pelo meio.

Esse mérito, não sendo só seu, é muito seu e é inapagável. Mas, depois, as facilidades da maioria absoluta fizeram do optimismo uma forma de ofuscação desprevenida. Governou-se solitariamente, e muito pior, com maioria absoluta. Em vez de oportunidade para abrir e alargar, pelo contrário a maioria absoluta deu a liberdade de se obstinar, não ouvir e fechar o leque.

Confiar não é fechar, mas abrir, não é repetir os fiéis, mas convocar os que muito além dos círculos fechados podem ser mais desafiados a contribuir para o interesse comum. Costa bem pode dizer que se arrepende de ter dito um dia que Lacerda Machado era o seu maior amigo (a que propósito?), que um primeiro-ministro não tem amigos (outra enormidade!), mas foram as escolhas dentro de círculos de amizade que o guiaram. Mesmo que a lógica da escolha não fosse clientelar, de política para os amigos, o dano é imenso. E é claro que o pensamento que corre na cabeça dos populismos é o outro, a enviesar a verdade (que por isso mencionam tanto) até derrubar o regime.

O problema é sistémico e a ameaça do populismo não justifica autocondescendência. É uma cultura política e institucional que tem de ser travada, no governo e nas nomeações além governo. As alternativas serem tremendamente disruptivas, não desresponsabiliza. Pelo contrário. Configura uma exigência de regime.

Tempos atrás fiz uma sugestão para a maioria absoluta do PS: quase 30 anos depois, já faziam uns novos Estados Gerais. As razões estão aí à vista de todos. A pergunta a pôr é se o PS vai continuar a ignorar o problema de regime para que tem contribuído de forma grave, ou se vai tentar, finalmente, ser parte da solução. Se não o fizer, bem podemos recear pelo futuro deste regime político corroído. Mas será sequer capaz de ainda organizar uns Estados Gerais?

P.S.: Já entregue este artigo de opinião, chegou a notícia de que João Galamba apresentou a sua demissão por motivos muito compreensíveis de tranquilidade familiar, o que não diminui as razões estritamente políticas por que já não devia estar no Governo e que não tiveram a eficácia política que deviam ter tido.