Setembro é o mês do regresso. O regresso ao trabalho, às aulas, aos horários, aos formulários, à burocracia, às idas e às vindas. No atual contexto da temporalidade moderna, setembro foi deixando de ser o mês da despedida gradual do verão. Era ao longo deste período que as comunidades começavam a preparar-se para a chegada do frio e do mau tempo. Na verdade, este já não é vivido como um mês de transição em que paulatinamente as populações se iam habituando à inevitabilidade do inverno. Agora o “tempo do inverno” chega de rompante apesar do calor dos dias e do bom clima que se mantém até outubro. Por outro lado, “o regresso” representa nos dias de hoje um enorme slogan publicitário anunciado até à exaustão pelas marcas de material escolar e desportivo, pelas grandes superfícies e lojas de roupa. Setembro transformou-se numa excelente época de vendas.
Este período carateriza-se pela retoma de um conjunto de hábitos e de gestualidades que marcam a vida diária, às quais nos vamos readaptando e ajustando com a rapidez possível. Tal como foi amplamente estudado pela sociologia, e outras ciências sociais, a vida quotidiana compõe-se por um conjunto de rotinas que se repetem de dia para dia. São inúmeros os estudos empíricos e as perspetivas teóricas que ao longo da segunda metade do século XX se debruçaram sobre o micro-social, analisando os seus ciclos e ritualidades, assim como, os seus encantos, as suas artes e saberes práticos. Alguns dos mais interessantes ensaios de sociologia, de autores como Erving Goffman ou Michel Maffesoli (entre muito outros), propuseram desvendar certas regularidades em que se alicerçava a vida de todos os dias, mas também as suas ambivalências e imprevisibilidades.
Contudo, não deixa de ser sintomático depreender que com o crescente domínio do neoliberalismo, no final do século XX, e os respetivos impactos económicos e sociais resultantes da crise financeira de 2008, o enfoque de muitas análises científicas se tenha recentrado (e bem) nas dinâmicas dos macroprocessos socioeconómicos e das suas consequências no aumento das desigualdades, das novas formas de exclusão e de vulnerabilidade social.
A urgência do contexto histórico impeliu, até certo ponto, a necessidade de aprofundar o estudo desses fenómenos que, apesar de investigações entretanto realizadas, são ainda relativamente desconhecidos considerando as suas múltiplas dimensões. No entanto, a importância do conhecimento e das respostas sobre os tópicos mais urgentes – capazes de suportar a ação da política pública – não deve significar, simultaneamente, a desvalorização dos micro-processos e da maneira como estes estruturam e se desenvolvem na vida quotidiana.
Aliás, a própria crise económico-financeira produziu profundas alterações nos quotidianos e no modo como o micro-social se reconfigurou encontrando novas soluções, mas também ajustes forçados e privações impostas em função das diferentes políticas de austeridade. Muitas destas reconfigurações são ainda relativamente invisíveis e não só precisam de ser estudadas com detalhe, como requerem ser politizadas, debatidas e discutidas. Um dos tópicos que padece de estudo e debate é precisamente o tema do uso das temporalidades quotidianas, no sentido de perceber como este é organizado no seio das famílias e na relação que, por sua vez, estabelecem com as infraestruturas, equipamentos e serviços disponibilizados pelas cidades e seus municípios.
Por exemplo, seria interessante perceber até que ponto este período de regresso ao quotidiano das rotinas poderia ser melhor enquadrado e organizado pelas diversas instituições públicas e privadas, equacionando, designadamente, soluções que consigam precaver as disparidades sociais no acesso a certos bens e serviços. A discussão sazonal em torno do preço dos livros escolares e da necessidade de se promover a sua crescente gratuidade, insere-se neste tipo de questões que urge serem ainda mais politizadas. Tal como o debate sobre os inúmeros problemas relacionadas com a mobilidade espacial e o desgaste diário produzido em territórios tão diferenciados como o interior das áreas metropolitanas ou os espaços mais rurais e periféricos. Este tornou-se num dos temas mais prementes e que encontrou em algumas localidades e comunidades soluções interessantes e sustentáveis que podem ganhar escala.
Em suma, é imprescindível regressar à política do quotidiano ou à política da vida, como designou o sociólogo Anthony Giddens (cuja obra teórica foi sendo relativamente esquecida, em parte um tanto injustamente), mas numa abordagem diferente da que foi proposta pelo autor e que vise sobretudo uma maior participação coletiva e cívica, ultrapassando o microcosmo do indivíduo e da vida privada. Uma política que parta do micro como alavanca para dinâmicas gerais, inovadoras de ação coletiva e de intervenção institucional. As próximas eleições autárquicas são um momento decisivo para encetar e aprofundar esta perspetiva de retorno à política (e, já agora, à sociologia) do quotidiano.