Dois ilustres comentadores televisivos, entre os quais figurava o Major-general Isidro de Morais Pereira, defenderam, recentemente, a peregrina ideia de que Taiwan nunca pertenceu à China. Como é evidente, trata-se de uma grande “confusão”, para não lhe chamar outra coisa.  Aliás, o nome oficial do país, reconhecido por cerca de duas dezenas de países, é justamente República da China. Este facto deveria, só por si, constituir uma boa pista para os comentadores em questão.

A questão de Taiwan explica-se de forma rápida. Foi território chinês até 1895, data em que foi anexado pelo Japão. Em 1945, regressou ao controlo chinês depois da derrota do Império Japonês na Segunda Guerra Mundial. Na sequência da derrota dos nacionalistas perante os comunistas na Guerra Civil Chinesa (que terminou em 1949), os nacionalistas refugiaram-se em Taiwan.

O regime de Chiang Kai-shek, instalado na ilha e protegido pelos Estados Unidos, sempre se considerou o Governo legítimo de toda a China e, por isso, manteve a designação de República da China. Foi reconhecido, como tal, pela ONU até 1971, data em que a República Popular da China (a China continental, controlada pelos comunistas) a substituiu como legítima representante do Estado chinês. Coexistem, por isso, duas repúblicas chinesas: a República Popular da China e a República da China. A maioria esmagadora dos países, incluindo Portugal e os próprios Estados Unidos, reconhecem a República Popular da China como a legítima representante do Estado chinês.

Nas últimas décadas, alguns sectores da sociedade de Taiwan têm vindo a defender uma declaração de independência da ilha, algo que a desligaria formalmente do resto do território chinês. O regime de Pequim tem vindo a avisar que não aceita uma eventual declaração de independência de Taiwan e que esse facto, a suceder, terá como consequência uma intervenção militar por parte da China continental.

O objetivo da República Popular da China é integrar, a médio prazo, Taiwan na sua jurisdição, tal como já sucedeu com Hong Kong e Macau. Por outro lado, os Estados Unidos pretendem manter o statu quo do território.

A questão de Taiwan constitui apenas um dos vetores de uma questão mais vasta: a luta pelo predomínio global entre a China e os Estados Unidos.

Para muitos, é difícil acreditar que a China se tenha transformado numa potência global, com vastos interesses geopolíticos (incluindo, como é óbvio, o poder militar) fora do Mar da China Meridional. Para os portugueses, é ainda mais difícil olhar para a China como uma grande potência. Afinal, Portugal manteve, até há apenas 24 anos, a administração de uma parte do território chinês. Foi em Macau, hoje uma Região Administrativa Especial da República Popular da China, que Portugal fechou o seu ciclo imperial de quase 600 anos.

Durante séculos, a China representou o protótipo de potência “isolacionista”. Nada exterioriza melhor essa natureza do que a “Grande Muralha da China”. No essencial, o poder imperial chinês preocupou-se, de forma quase ininterrupta, em manter o Império fisicamente separado do mundo exterior.

Tudo isto não impediu que a China mantivesse uma suserania, muito teórica, sobre alguns povos que habitavam na periferia imperial. É o caso da Coreia ou dos reinos vietnamitas. Além disso – durante um curto período, é certo –, as expedições do Almirante Zheng He no Índico, realizadas entre 1405 e 1421, demonstraram que a China possuía, naquela época, a força naval e a superioridade tecnológica necessárias para alargar a sua influência política e domínio militar muito para além das fronteiras e periferia imperial.

O facto de não o ter feito não resultou de qualquer desastre ou incapacidade militar ou tecnológica. As grandes expedições navais chinesas do início do século XV – que chegaram à África Oriental – terminaram porque o poder imperial decidiu abandonar o projeto e voltar a fechar o país.

Esse isolamento autoinfligido atrasou, do ponto de vista económico e militar, o país e colocou-o à mercê das grandes potências industriais da Europa no século XIX (e também de um Japão rapidamente industrializado). No início do século XIX, Napoleão deixou, a propósito da China, o seguinte aviso: “Deixem a China dormir, porque, quando ela acordar, o mundo inteiro tremerá!”. A verdade é que a China, após alguns séculos de decadência, readquiriu o seu milenar estatuto de “grande potência”. Estatuto que já detinha à época do Império Romano.

A China abandonou, nas últimas décadas, o seu secular isolamento. Aprendeu a lição. Sabe que tem de competir, do ponto de vista económico e geopolítico, neste novo mundo globalizado. Age, ainda assim, com a autocontenção que resulta de uma experiência histórica de milénios.

Ao contrário das instáveis e imprevisíveis potências novas (os Estados Unidos têm apenas 247 anos de História como país independente), a China atual recuperou o sentido da História, algo que lhe permite planificar – de uma forma caracteristicamente confucionista – a sua política externa à luz de “um tempo longo”. A China está disposta a esperar.