A Carta dos Direitos da Era Digital deu origem a uma torrente de artigos de opinião a anunciar o regresso da censura a Portugal. Tudo por causa do seu artigo 6º, cuja redação faz de facto lembrar outros tempos.
Porém, uma coisa é denunciar o conteúdo do dito preceito, pelos riscos censórios que a sua abrangência comporta, outra é achar que as fake news – fenómeno que lhe está subjacente – não constituem um problema sério ou, pior ainda, que devem continuar a circular livremente.
Para que fique claro: (1) fabricar conteúdos manifestamente falsos, (2) colocá-los a circular nas redes sociais como se fossem notícias, (3) ao mesmo tempo que se promove (artificialmente) a sua disseminação, não corresponde ao exercício da liberdade de expressão.
Por muito amplo que seja o alcance desta liberdade – e é bom que seja, porque ela providencia o oxigénio que a democracia respira – nem tudo o que se diz, escreve ou publica cabe lá dentro. Há muitas condutas que estão dentro, mas há também algumas que estão fora. Sempre foi assim e a era digital não será diferente.
Tal como acima caracterizadas, as fake news estão fora do âmbito de proteção da liberdade de expressão porque esta não nos dá o direito de enganar dolosamente os outros. Da mesma forma que a liberdade contratual não nos dá o direito de burlar a contraparte. E tal como a liberdade religiosa não permite extorquir dinheiro aos fiéis.
Dizer que sempre houve fake news é o mesmo que dizer que sempre houve internet, sites, blogues e redes sociais. É ignorar que o acesso ao espaço público é hoje praticamente universal e se processa sem qualquer tipo de triagem. Vivemos numa nova era, com problemas novos.
Esta visão dos limites da liberdade de expressão não implica apenas uma definição muito rigorosa do conceito de fake news. Implica também um trabalho meticuloso de análise dos conteúdos em circulação, para “separar o trigo do joio” – um trabalho sistemático de fact-checking.
Os projetos que, nesta linha, foram criados nos últimos anos – também em Portugal – são bastante promissores, incluindo pelas parcerias com redes sociais e televisões. É evidente que entre a verdade mais pura e cristalina e a falsidade mais despudorada há várias tonalidades de cinzento. Mas não é por haver crepúsculo que se pode negar a diferença entre o dia e a noite. Qualquer fact-checker tem aliás várias classificações intermédias.
Dito isto, pergunta-se: o Estado deve fazer fact-checking? Não. O Estado pode reconhecer, recomendar ou premiar projetos de fact-checking já existentes? Não parece. O Estado deve apoiar o surgimento de novos projetos com este objetivo? É duvidoso, sobretudo porque já existem alguns que se afirmaram autonomamente. A definição de critérios objetivos e transparentes para os apoios estaduais seria sempre um problema.
O Estado tem, isso sim, um papel na capacitação dos cidadãos para navegarem no espaço público digital sem caírem na armadilha das fake news. Cidadãos responsáveis precisam de estar atentos e de desenvolver estratégias de autoproteção. Devia ser esse apenas o conteúdo do artigo 6º – o que é bem diferente, porém, de infantilizar os cidadãos pela omnipresença protetora do Estado.