Após algumas décadas de inúmeras transições do autoritarismo à democracia no final do século XX, estarão as ditaduras de regresso? De facto, entre antigas e novas, as ditaduras dominam hoje mais de um terço do mundo. Aliás, a Freedom House estimava, em 2019, que a liberdade global se encontrava em declínio. No entanto, mais importante do que o seu número – e como, sob o ponto de vista do poder internacional, os países não são todos iguais –, é fácil de observar que o autoritarismo domina grandes potências, como a Rússia e a China, ou países com grande importância estratégica para o mundo, como alguns produtores de petróleo e de outras matérias-primas, como nos casos da Arábia Saudita e das monarquias do Golfo, ou da Venezuela de Chávez e Maduro.

Algumas ditaduras sobreviveram ao fim da Guerra Fria e à chamada terceira vaga de democratização, demonstrando grande capacidade de adaptação e resiliência, e outras são novas ou sofreram mudanças ligeiras. A China contemporânea poderia ser a mais interessante «evolução na continuidade», para usar uma expressão conhecida na fase final do Estado Novo português. Outras ditaduras conheceram sucessões familistas, quase dinásticas, e no início do século XX estavam ainda próximas do totalitarismo, como, por exemplo, a Coreia do Norte. Nas últimas décadas, os regimes autoritários cresceram em número, mas sobretudo em variedade, marcando desde a quase totalidade dos países que nasceram da antiga União Soviética à ainda hesitante deriva autoritária de Erdogan na Turquia, ou de Orbán na Hungria.

As Ditaduras. Velhas e Novas

Independentemente das suas diferentes naturezas, as ditaduras contemporâneas apresentam alguns traços de continuidade e de mudança em relação ao passado.

A personalização do poder é um elemento de continuidade. Se 44 % das ditaduras se tornaram personalizadas entre 1946 e 1999, esse número subiu para 75%, de 2000 a 2010. De Vladimir Putin a Lukashenko, de Erdogan a Orbán, a personalização parece continuar a ser um universal dos regimes autoritários. Com reformas constitucionais à medida ou alteração de posição no sistema político (como no caso da Rússia), a cristalização do poder num ditador manteve-se, e o dilema da sucessão permanece.

São regimes menos ideológicos do que os do passado. As ditaduras fascistas e comunistas impunham modelos ideológicos muito fortes, com instituições de socialização complexas e fortemente enraizadas na sociedade, e inimigos bem definidos. Outras tinham valores mais difusos mas importantes, que iam do reacionarismo de inspiração religiosa ao marxismo e ao nacionalismo. Se o nacionalismo está quase sempre presente, os novos regimes autoritários são bem menos ideológicos do que os do passado e o seu discurso legitimador aponta para a «ordem» e o «bem-estar» da sociedade, com mais elementos miméticos das democracias. Muitas vezes o discurso associado ao crescimento económico e à melhoria das condições de vida da população é quase exclusivo, aproximando-o dos regimes democráticos. No entanto, a construção de «inimigos externos» associados à comunidade internacional e suas organizações, bem como ao soberanismo são acionados com regularidade.

Mimetizando mais as democracias. As velhas ditaduras faziam escasso recurso a eleições semicompetitivas ou parcialmente livres, parlamentos com representantes das oposições, e liberalização de censuras prévias aos meios de comunicação social. As novas, sim. Em 1975, quase metade delas nem tinham simulacros de instituição representativas, como parlamentos, por exemplo. Em 2015, mais de dois terços das ditaduras tinham parlamentos com representação de oposição, ainda que, muitas vezes, sem qualquer capacidade de condicionar o poder. Os regimes de partido único foram, em inúmeros casos, substituídos por regimes com um partido dominante bem entrincheirado no Estado. Por outro lado, as tensões em volta deste aumento do «pluralismo limitado» são também mais evidentes. Apesar da diminuição clara das pressões democratizadoras da comunidade internacional desde o início do século XXI, o escrutínio internacional sobre as eleições é hoje mais forte, e a incerteza introduzida pela sua realização para os ditadores é maior. Da Bielorrússia de Lukashenko à Venezuela de Maduro, as batalhas eleitorais são conjunturas de saliência negativa para os seus regimes, e às vezes fatores de crise.

A repressão é sempre um universal das ditaduras, mas as execuções e a criminalização política em massa (ou seja, a chamada «repressão de alta intensidade») estão menos presentes. A mobilidade da população é maior e a sua integridade física é menos ameaçada. Quando existem modos mais violentos de repressão, utilizam-se métodos mais clandestinos, sobretudo quando visam elites de oposição, como é o caso das execuções. O historial de envenenamentos e «desaparecimentos» bem conhecidos da opinião pública mundial está aí para o ilustrar. A repressão aberta das manifestações de desafeção é menor, utilizando expedientes administrativos para as limitar. Por sua vez, a repressão a ativistas da oposição é mais selecionada, evitando-se a sua forma mais descontrolada, as prisões e os julgamentos políticos.

A censura e o controlo da informação são um universal das ditaduras. Vários regimes sobreviventes à chamada terceira vaga das democratizações mantêm clássicos regimes de censura, mas as alterações profundas que as redes sociais e as suas relações com os meios de comunicação social ocasionaram levaram a novos modelos de controlo de informação. De uma forma geral, o «pluralismo limitado» aumentou. Os principais meios de comunicação social sofrem sobretudo um controlo económico indireto e autocensura, com ameaças, demissões forçadas de jornalistas, e até encerramentos em conjunturas críticas. De Singapura à Rússia, a autocensura é dominante. Mais complexo é o controlo das redes sociais, que passa por alguma diversidade, desde a sua «nacionalização» à mobilização de meios clandestinos de infiltração, informação e contrapropaganda nas redes. A admissão da censura pelos regimes é rara e, quando presente, legitima-se na moral e no nacionalismo.

Os novos regimes autoritários têm um nível de integração maior nos mecanismos da economia de mercado. Ainda que algumas ditaduras socialistas e tradicionais sobrevivam, os novos regimes autoritários têm um nível de integração maior nos mecanismos da economia de mercado. Mesmo as ditaduras socialistas sobreviventes foram-se adaptando ao capitalismo, ainda que o neguem formalmente. Os seus modos de dominação, no entanto, são mais propícios às intervenções ilegais do Estado, à corrupção, às nacionalizações ou privatizações erráticas, em benefício particular. A corrupção da elite política, ajudada pela fraca autonomia do judicial e pelo controlo da comunicação social, introduz também uma incerteza generalizada nas relações entre um Estado, na maioria dos casos capturado, e a sociedade.

Claro que, tal como conhecemos muitas democracias com poucos elementos de rutura institucional, também alguns regimes no mundo das ditaduras mudaram pouco, apresentando fortes elementos de continuidade. Apesar disso, a grande maioria das autocracias são menos ideologizadas, usam menos a repressão brutal e indiscriminada sobre a sociedade, cooptam mais para a sua elite, e aumentam o «pluralismo limitado», em eleições, a formação de partidos e a liberdade de expressão, em comparação com as suas congéneres do passado. Estes elementos de mudança, no entanto, não escondem os universais desta família de regimes políticos, que se encontra no polo oposto das democracias.

Populismo não é igual a Ditadura

A vaga populista de direita (mais ou menos radical) das últimas décadas e a chegada ao poder de alguns partidos e líderes, como, por exemplo, Orbán, na Hungria, Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, ou o do Partido da Lei e da Justiça, de Kaczyński e Duda, na Polónia, têm levado muitos académicos e analistas a regressar a um conceito introduzido por Fareed Zakaria no final do século XX, o de «democracia iliberal». Acresce que, na UE, vários destes partidos já passaram pelo poder, como a Liga de Matteo Salvini, em Itália, ou na Áustria, em governos de coligação, e o seu balanço conhece níveis de diminuição da qualidade da democracia, mas não processos de mudança de regime.

Para alguns analistas de política contemporânea, esta dinâmica de radicalização tem sido marcada, desde o início do século XXI, por uma polarização política, à custa dos partidos e governos de centro-esquerda ou de centro-direita. No entanto, a maioria destes novos partidos populistas tem-se situado à direita do espectro político e, como salientou Marc Plattner, um conservador liberal fundador do “Journal of Democracy”, «os desenvolvimentos mais interessantes e com consequências para o futuro da democracia liberal provavelmente vão emergir das lutas internas na direita».

Quais as características destes novos partidos, movimentos e líderes, que geralmente são definidos como populistas? A maioria dos estudiosos, nomeadamente Cas Mudde, aponta para três traços distintivos: a oposição entre «o povo» e a «elite corrupta»; o discurso em nome do povo e da sua «vontade»; o facto de terem uma «ideologia fina», ou seja, sem coerência, eclética, e por vezes contraditória e mutante. O populismo repete enfaticamente o seu caráter democrático, ainda que aponte difusamente para regimes pessoalizados e plebiscitários, que ultrapassam as instituições políticas, sobretudo os parlamentos. As poucas experiências de governo populista nas democracias apontam para a sua tentativa (por vezes conseguida, como na Hungria) de limitar a independência do judicial, dos meios de comunicação social, e direitos individuais e de minorias.

A prática populista no poder tem variado, conforme a autonomia e a resistência das instituições. No Brasil de Bolsonaro, o discurso presidencial autoritário e revisionista sobre o legado da ditadura militar não tem tido efeito no Congresso ou no aparelho judicial. No caso de Trump nos EUA, o balanço final do seu mandato é conhecido de todos. Na UE, a permanência no poder destes partidos demonstra que o seu desafio mais importante à democracia liberal se tem refletido no combate à autonomia do judicial, aos direitos das minorias, e à própria UE.

A distinção entre liberalismo e democracia é antiga, mas o conceito de democracia iliberal já sofreu alguma evolução e define hoje regimes políticos que, muito embora conhecendo eleições livres (ou quase) e justas, e estejam integrados em comunidades democráticas como a UE, sofrem limitações a algumas liberdades, menor autonomia do judicial, limitações ao poder legislativo dos parlamentos, e outras. A democracia iliberal é uma forma de regime político? É duvidoso. Talvez exprima apenas uma dinâmica incerta e não uma forma política consolidada.

António Costa Pinto assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “O Regresso das Ditadura?”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.