Apesar dos olhares europeus cada vez darem menos relevo às questões da América Latina, exceção feita para os eventos mais trágicos, sejam provocados por mão humana ou pelas alterações climáticas, esta região do mundo tem vindo a mudar substancialmente nos últimos anos. Tem crescido o número dos países que se distanciam nas suas relações comerciais da Europa e dos Estados Unidos. A República Popular da China emerge como o seu principal parceiro comercial, encetando parcerias noutras áreas de cooperação, como a educação superior.

Contudo, a América Latina ainda não ultrapassou alguns desafios. Apesar de ser o continente que tem concentrada mais biodiversidade e onde se encontra a maior quantidade de minério em solo terrestre, não logrou passar de fornecedor de matérias-primas a produtor de bens comercializáveis, apesar de existirem algumas exceções.

Entre os olhares para a América Latina como um mundo pós-colonial, o “quintal” dos Estados Unidos ou, agora, o novo parceiro da China apanhado desprevenido, não tem existido uma perspetiva sobre as idiossincrasias locais nem a complexidade da sua dinâmica histórica, cultural, política e social. No entanto, a mudança de alguns governos, como no caso do Chile, da Argentina e, recentemente, do Brasil, mostram uma vontade política por parte dos novos governantes de uma maior interação entre si e com o sistema internacional.

Este reposicionamento deve-se, também, à introdução no debate político local de questões globais como o oceano ou as alterações climáticas. O facto de os países ibero-americanos aproveitarem os palcos das organizações multilaterais para colocarem estas questões na agenda internacional, permite aos mais atentos perceber que começa a existir uma tentativa de traçar uma agenda própria e não apenas de seguir as tendências impostas pelas potências mais relevantes do sistema internacional.

Os discursos conduzidos na Conferência do Oceano, que decorreu no passado mês de junho, em Lisboa, pelo Chile e pela Argentina testemunham bem esse posicionamento.

Mais do que a sua presença política, foram interessantes as propostas trazidas por estes países. O Panamá reportou-se à experiência coletiva entre este país, a Costa Rica, a Colômbia e o Equador na governação do oceano. Este projeto criou uma das maiores reservas naturais oceânicas existentes no mundo e assegurou a reposição dos stocks de fauna e flora que estavam em degradação.

Chile e Panamá defenderam uma coligação americana para a proteção do oceano, com a multiplicação das áreas protegidas e uma maior reflexão sobre a exploração mineira subaquática. A Argentina ousou tocar num dos pontos sensíveis destas questões: a partilha de responsabilidades que tem de ser desigual, tal como não foi igual a responsabilidade pelos impactos negativos no clima e no oceano ao longo dos últimos séculos. Estas propostas apresentam os países de uma área regional pronta a colaborar entre si e a participar nos desafios da governação global.

Entre mudanças e novas parcerias

Testemunho dessa mudança foi a participação de Lula da Silva, enquanto Presidente do Brasil, na COP 27 – Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, marcando o regresso do Brasil às questões de governação global. Lula da Silva aumentou o impacto da sua participação com a proposta que a próxima conferência seja realizada num dos estados brasileiros da Amazónia, de forma a sensibilizar para as especificidades do território que possui mais biodiversidade no planeta e é conhecido como o “pulmão da terra”.

As reticências experimentadas em Sharm El-Sheik, Egito, demonstram que ainda há um longo caminho a percorrer e um enorme trabalho a desenvolver.

Os compromissos assumidos ficaram aquém do necessário para reverter o ritmo das alterações climáticas, mas logrou-se o acordo político em torno da constituição de um fundo para os desastres climáticos que deverá favorecer os países menos desenvolvidos. Explica-se, pois, que o envolvimento dos países ibero-americanos neste esforço de construção de uma governança global dos ecossistemas terrestres e marinhos seja uma prioridade para estes países que, individual e regionalmente, já propõem iniciativas e projetos de governação global.

Esta zona do continente será particularmente afetada por todas as alterações aos equilíbrios existentes na Amazónia, na Antártida e até o mar de plástico do Pacífico, que ameaça alocar-se também nas costas ibero-americanas. Sendo, ainda, um reservatório de minerais raros, fontes de energia fósseis e matérias-primas essenciais a vários setores industriais, incluindo o alimentar.

Nesta posição, e enquanto um dos fornecedores mais relevantes das cadeias produtivas mundiais, os países ibero-americanos encontram margem de negociação. Num enquadramento de competição pelos seus recursos, está aberta a negociação e, sobretudo, a possibilidade de exigir a tão necessária transferência de tecnologia para alguns destes países.

Talvez tenha sido essa secundarização da América Latina no jogo das grandes potências internacionais, com raras exceções, como o Brasil que integra os BRIC, que tenha aberto esta porta de procurar parcerias a diferentes níveis. É notório e conhecido que a República Popular da China aproveitou a ausência e desinteresse ocidentais para aprofundar os seus laços comerciais e a sua cooperação ao nível cultural e educativo com estes países. A grande questão é, no espaço que ainda resta, quem escolherá a América Latina acolher como parceiros.

Na verdade, o problema é que a América Latina sendo uma das regiões mais internacionalizadas do mundo pela sua própria constituição demográfica, assente em sucessivas migrações, que permitiram a interação de diversas culturas e a convergência de produtos e saberes da América, da Europa, da África e da Ásia, parece ter estado sempre dependente dos anseios das potências que dominavam o mundo.

A ideia que se tem é que os países ibero-americanos não tiveram a oportunidade de decidir o seu destino, fosse por estarem debaixo do sistema colonial, fosse porque o seu vizinho a norte, os Estados Unidos, se tornavam cada vez mais a grande potência mundial que ditava, também, as parcerias destes países. Hoje está aberto à América Latina o retorno à liderança do seu destino, ainda que consciente das suas dependências e interdependências.

O que pode mudar?

Embora o contexto ibero-americano ainda esteja repleto de desafios por ultrapassar, como a excessiva dependência económica do fornecimento de matérias-primas e questões de desenvolvimento social e de distribuição de riqueza, os novos contextos poderão conceder de novo alguma centralidade a esta região.

O potencial surgimento de um entendimento regional mais profundo, sanando algumas divergências na forma como são vistos os mecanismos de cooperação regional, o abrandamento do cenário de hostilização dos EUA à Venezuela e, sobretudo, a necessidade de as potências globais negociarem com outros países a sua influência, deixam caminhos abertos à América Latina.

A par destes elementos positivos que poderão nortear o futuro, existem outros que ensombram o presente. Nesta parte do mundo, o impacto da pandemia Covid-19 foi muito intenso, ao ponto de fazer regredir indicadores de desenvolvimento social, como o crescimento da carência alimentar, o aumento do abandono escolar infantil e a incapacidade de alguns países implementarem os processos de vacinação.

Mas foi também neste período difícil que se geraram novas parcerias de investigação na área da saúde, nomeadamente, no campo farmacêutico, que permitiram à China ambicionar o aprofundamento da cooperação internacional nesta área. Situação que evidencia que a região é ainda apetecível para alguns dos mais representativos atores internacionais.

Apesar de não figurar enquanto prioridade das maiores potências e blocos regionais, entenda-se que refiro em particular os Estados Unidos da América, a China e a União Europeia, não deixa de ser um elemento essencial para a manutenção da estabilidade internacional.

Não são só os votos na Assembleia Geral das Nações Unidas que podem fazer a diferença, são, também, os acordos comerciais estabelecidos e as parcerias implementadas para o desenvolvimento. Afinal, a América Latina é, ainda, uma região com potencial de maior crescimento económico, com uma demografia favorável, ainda com uma boa base de jovens, e uma fonte de estabilidade climática para o globo. Detém, por todas estas razões, capacidade e poder negocial com as potências mais relevantes.

As suas jazidas de minerais raros, o seu potencial de crescimento económico, a par de uma ainda população jovem e de mercados em crescimento, colocam-na numa posição negocial, no mínimo, interessante, cujo grande desafio será a manutenção dos canais de diálogo e cooperação com os diversos atores internacionais.

Se, por um lado, a competição entre os EUA e a China trarão tentativas de alinhamento por parte destes países, por outro, aumentará a relevância que esta parte do mundo tem para o estabelecimento de equilíbrios estratégicos.

Trata-se, pois, de um regresso político esperado, tanto interna como externamente. O contexto é complexo aos níveis externo e interno. À competição entre potências e tentativa de alinhamentos em blocos, juntam-se crises sucessivas internas, ligadas à frustração de expectativas de desenvolvimento e crescimento económico ainda não alcançadas.

Os desempenhos de países de maior dimensão como a Argentina, o Brasil, o Chile, o México e até a Venezuela, serão fundamentais para que a região como um todo ganhe no desempenho internacional. Mas, como todos sabemos, antes de ter resultados externos ou enquanto se trabalha diplomaticamente para os resultados externos, há que lograr a pacificação social e a reversão das atuais tendências de empobrecimento das populações. Tudo isto numa economia mundial que crescerá menos.

São tarefas difíceis, mas que trazem a esperança de que a América Latina possa ajudar a criar a necessária multipolaridade que poderá obstar à formação de blocos demasiado definidos e impositivos.