Como mais ou menos toda a gente, tenho acompanhado com interesse e estupefacção os acontecimentos na Catalunha, onde um grupo de gente de penteados esquisitos e higiene pessoal duvidosa parece estar empenhado em dar início a uma nova guerra civil espanhola. Mas maior interesse e estupefacção tenho tido com o entusiasmo com que aqui em Portugal e um pouco por essa Europa fora muita gente parece ter simpatia e apreço pelas acções e opções dos “independentistas” catalães. Mais tolos que tolos só mesmo os tolinhos que os seguem.

Os argumentos da autodeterminação do “povo” e da ilegalidade do processo de secessão com que os dois lados se digladiam não me comovem particularmente. Os “povos” não têm vontade: uma parte dos ditos tem uma vontade, outra tem outra, e as duas não formam uma terceira, “Geral”. Um país torna-se independente quando uma dessas partes consegue ter força (nas suas várias formas) para a impôr ao país de que fazia parte e à parte do seu “povo” que não quer tornar-se independente. Os EUA, por exemplo, tornaram-se independentes não por ter sido a vontade do “nós, o Povo” supostamente autor da Declaração de Independência, mas porque a parte do povo que queria ser independente ganhou uma guerra civil à parte que não queria, e décadas mais tarde, a Confederação não se tornou independente porque quem queria ser independente não conseguiu ganhar uma guerra civil aos que não queriam que eles fossem independentes, não por a secessão ser ilegítima.

Dito isto, a ideia da Catalunha ser independente é particularmente perigosa a vários níveis. Em primeiro lugar, uma grande parte da população (talvez a maioria) não quer a independência, como se viu pelos resultados das eleições para o parlamento da região, em que os partidos independentistas não tiveram a maioria dos votos (embora tenham conseguido a maioria dos lugares), o que significa que mesmo que se tornem independentes, o conflito interno será permanente e possivelmente violento, e só um estado autoritário na Catalunha conseguirá manter a independência contra uma parte significativa do seu “povo”. Em segundo lugar, o estado espanhol, que por todas as razões e mais algumas, não pode aceitar uma secessão de uma das suas regiões, querendo repor a normalidade, terá de se empenhar (já o está a fazer) num processo em que se poderão gerar e confrontar duas autoridades na Catalunha – a espanhola e a “independente”. Em terceiro lugar, pode fazer alastrar a violência no resto de Espanha, à medida que independentistas nas outras regiões se entusiasmem com o “exemplo” catalão. E finalmente, há as consequências (graves) para o resto dos países europeus. E não estou só a falar da Escócia ou das outras regiões em França, Itália, Alemanha e em muitos outros países, que podem querer tornar-se independentes.

Por alma de quem é que a Rússia está tão interessada (basta ver a RT nestas últimas semanas) em promover o conflito na Catalunha? Se (como escrevia Rui Ramos há umas semanas) a Catalunha sair desta confusão como um país independente, em rebelião, a ideia da União Europeia como garante da normalidade democrática morre, o que não só facilitará a ascensão e consolidação do poder de governos semi-autoritários como o da Hungria ou o da Polónia, como fragiliza a UE e divide os vários países Europeus (um objectivo de Putin), e garante que as minorias “russas” na Estónia, Letónia ou Lituânia poderão fazer “referendos à catalã” com mesas de voto na rua, sacos de plástico a servir de urnas e gente a votar sabe-se lá quantas vezes (e provavelmente com muitos a serem impedidos de o fazer) e dizer que a “vontade do povo” é separarem-se desses países ou serem anexados à Rússia, resultados que ninguém terá depois capacidade para impedir.

Quase sem se dar por isso, o que se passa na Catalunha talvez venha a ser a origem da próxima grande guerra na Europa. Que na Catalunha haja quem não perceba isto ou perceba mas esteja disposto a correr o risco em nome das suas ambições, até se compreende. Que por cá e por essa Europa fora haja quem se entusiasme com isto e ache que é tudo muito democrático e bonito é que é bem pior.