(À laia de ‘disclaimer’, afirmo ser este o artigo que nunca pensei justificar-se ser escrito, uma vez que, não só não me revejo nos arquétipos mais conhecidos do feminismo, como não concordei com o que ficou conhecido como “criminalização do piropo”. Julgava eu, erroneamente, que se tratava de uma batalha ultrapassada. Aqui fica o meu mea culpa).
Nos últimos dias temos sido bombardeados não apenas com a polémica em torno do acórdão que julgou não constituir crime de injúria a expressão “comia-te toda… Paga-me o que me deves”, como também com uma tristemente célebre entrevista do mais surreal candidato à Presidência dos Estados Unidos da América. Não me pretendendo deter nem sobre a construção jurídica que está subjacente à aludida decisão jurisdicional, nem sobre o perigo manifesto de se colocar um louco, em todas as suas dimensões, à frente dos destinos da nação mais poderosa do mundo (em ambos os casos por ter já existido quem o fizesse bem melhor do que eu…), o que me parece igualmente merecer alguma reflexão são os ecos que resultaram de ambas as intervenções.
Principalmente a primeira foi um verdadeiro detonador de discussões nas redes sociais que, para mim, tiveram o “efeito surpresa” de me mostrar que o machismo está de “boa saúde”, embora mais escondido. E, não por acaso, foi justamente nas já referidas redes sociais, muitas vezes a coberto de um cobarde anonimato, que o famoso “macho da coutada ibérica” saiu do curral onde se encontrava há décadas e bolsou toda a sorte de aleivosias.
Li, entre outras, que há um nexo causal entre a forma de vestir das mulheres e eventuais agressões de que sejam vítimas, no que me pareceu próximo do caso que motivou o filme de 1988, The Accused. Então como agora, escudando-se no tão célebre quanto machista adágio de que “mulher honrada não tem ouvidos”, os autores dos ditos comentários afirmaram o direito de se amesquinhar uma qualquer mulher porque se apresenta de mini-saia ou de top mais decotado (quiçá, a acumulação de ambos justifique, inclusivamente, como no citado filme, relações sexuais não consentidas).
Para esses (e, pelos vistos, também para Trump), uma mulher, por essa única condição, é suposto tudo ter de suportar, preferencialmente com um sorriso nos lábios, já que, se é alvo de tais comentários, é porque ainda é capaz de despertar algum desejo nos homens. Dito de outra forma, tais comentários remetem as mulheres para o lugar de objecto decorativo, numa qualquer loja, à espera de cativar um olhar que a leve para casa, tendo como única tarefa na vida manter a beleza que justifica a sua existência.
Eventualmente perdidos na sua boçalidade, o que tais homens não conseguem perceber é que essa linha de raciocínio os reconduz a uma dimensão de irracionalidade que não os diferencia dos animais. E, meus senhores, mesmos os animais mais dóceis são hoje obrigados a andar na rua de trela e açaime.
A autora escreve segundo a antiga ortografia.