O supremo tribunal de justiça da Holanda acaba de regular a eutanásia no país estendendo-a a pessoas com demência. Dizem que basta ter havido uma manifestação de vontade numa altura da vida em que a pessoa ainda não padecesse de demência. Esta decisão tem força de lei, logo, é para ser aplicada.

Já se matam menores, pessoas com deficiência e com demência; é a chamada rampa deslizante da morte a pedido. Na recente campanha para a legalização da eutanásia em Portugal, houve quem chamasse repetidamente à atenção para esta tragédia humana e civilizacional.

Os militantes da eutanásia, de ar indignado, logo disseram ser um alarmismo sem sentido, que tudo se resumiria à dita “morte digna”, à decisão individual esclarecida, e que as atrocidades em curso na Holanda e na Bélgica eram excepções a carecer de melhor informação. Como em quase tudo o resto, mentiram. Mentiram com a perfídia de quem diz querer o melhor sabendo que aí vem o pior. A partir de hoje, não é mais excepção. A partir de hoje, é a regra, as pessoas com demência poderão ser mortas, ainda que não tenham capacidade objectiva para avaliar o que na realidade lhes vai acontecer.

Este caminho, começado com o aborto livre, em particular com o primado e normalização do aborto eugénico, criou uma nova classe de pessoas: o ser humano descartável.

Há muita literatura sobre a “normalização” do ser humano, o homem padronizado, supostamente fruto de aprimoramento da espécie. Diversas doutrinas políticas, com especial consequência e destaque para o comunismo e o nacional-socialismo, tiveram enorme empreendedorismo nesta área com um lastro de milhões de mortos. Da União Soviética à Alemanha nazi, da China ao Vietnam e Cambodja, quem não cumpria os parâmetros do homem conveniente era pura e simplesmente liquidado. Se o genocídio judeu ocupa a primeira linha do horror por ter sido perpetrado sobre um povo forte, resiliente, com poder político e económico, empenhado, e bem, em que tais horrores não se repitam, não podemos esquecer que foi apenas uma parte do horror total.

Ao mesmo tempo que judeus conheciam a sua enorme tragédia, havia uma igual multidão de vítimas, algumas por motivos igualmente raciais, outras por delito de opinião, mas uma imensidão de vítimas sem voz, sem uma causa que motivasse a luta de outros. Doentes, pessoas diminuídas de alguma forma, órfãos desamparados, pessoas com deficiência física ou mental, foram exterminados por estes regimes em proporções dantescas; tiveram o seu holocausto silencioso.

Desde a revolução de 1789 que o positivismo, o primado da ciência sobre todas as áreas do conhecimento, a negação da transcendência e dos valores fundacionais da civilização ocidental, têm persistentemente feito o seu caminho impondo a sua mundividência, nunca desistindo da criação do homem novo, formatado à luz dos princípios preconizados por estas forças de ruptura.

Se pensarmos bem, o primeiro argumento para o aborto, para a eutanásia e para as causas fracturantes agregadas é sempre a “evolução dos tempos” e a “modernidade”. É o maniqueísmo da luz contra as trevas, tal qual em 1789, 1917, 1933, 1968… O resultado é invariavelmente o mesmo, não há lugar para os mais fracos, não há viabilidade para os diferentes, a sociedade tem de se dotar dos mecanismos para expurgar os inconvenientes.

É disto que falamos quando falamos das diferentes políticas de promoção de morte. Não vale a pena fingir que não é assim, não vale a pena fingir indignação. As diferentes cartilhas ideológicas têm um fim e um rumo para atingir esse fim. É um pouco como a progressão da covid-19, a Bélgica e a Holanda representam a chegada da primeira vaga, sendo aí que podemos ver o que chegará aos países que insistirem neste autêntico vírus social.

Distraímo-nos com a pandemia, esta, as passadas e as futuras. Lutamos com todas as nossas forças, num notável espírito de auto-preservação, somos capazes de nos transcender de forma notável. Era uma boa altura para pensarmos na profunda contradição que há quando lutamos uns dias para salvar vidas e advogamos outros dias uma hierarquia de importância que nos permite descartar outras vidas.

A grande questão da actualidade é esta. Terá toda a vida dignidade intrínseca, devendo o homem ser tratado de acordo com essa dignidade? Ou, em função das concepções politicas e filosóficas de alguns, é aceitável que se mate quem não se enquadre no projecto social previamente traçado?

Ainda a este propósito, vale a pena ver um filme recente extraordinário: “Milagre da cela 7”. Está lá tudo. A luta entre a realidade e as aparências. A relação entre os normais e os diferentes. A desprotecção dos mais fracos perante o Estado dos fortes. Mas, acima de tudo, o factor humano, aquilo que nos torna únicos e irrepetíveis, capazes da transcendência independentemente dos padrões que nos queiram impor.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.