Ouvi um par de vezes o manifesto público de apreensão sobre o curso e o desfecho da guerra entre a Cristina e o Manuel Luís. Há na minha família alargada uma Cristina e um Manuel Luís, mas de ramos diferentes, idades díspares e geografias distantes, não era, para meu sossego, nada com os primos; a família, preocupação primeira, estaria a salvo desta. Soube depois, que se tratava do duelo de audiências entre dois entertainers do prime-time matinal em sinal aberto.

O país oscila entre as audiências de programas de entretenimento e a incógnita quanto ao próximo treinador do Benfica. Correndo o risco de ser politicamente incorrecto, diria que a primeira ocupará as senhoras e a segunda trará os homens em sobressalto. O Brexit, as convulsões na ordem mundial, os sinais que marcam o presente e condicionam o futuro, são uma maçada empurrada pelos media para um canto sombrio da informação, quando lá chegam. Lá vamos, portanto, cantando e rindo.

Não é nova esta valorização do acessório em detrimento do essencial. A realidade pode ser enfadonha, desagradável e exigente. Na vida de pessoas que encontram uma série de obstáculos pessoais, directos e repetitivos a cada despertar, é necessário um espaço de descompressão que permita um alheamento do real, o que em doses razoáveis é até benéfico.

Se a Cristina e o Manuel Luís me são estranhos, os Red Hot no carro pela manhã ou um techno capaz de me limpar o cérebro ao final do dia são absolutamente imprescindíveis. O problema começa quando as fronteiras se cruzam sem critério e os actores circulam pelos diferentes palcos sem cuidar de salvaguardar a importância do papel que cada um desempenha.

O país chocou-se com um skinhead cadastrado no programa do Manuel Luís. O mesmo país fica confuso com a entrada do Presidente em directo e ao telefone no programa da Cristina. O país prende-se à guerra entre a Cristina e o Manuel Luís, presumo que desde ontem a Cristina esteja à frente, e alheia-se das eleições europeias, que estão à porta e têm uma importância fundamental na nossa vida.

Pode dizer-se que a culpa é do povo. Com os números incrivelmente altos de clientes do cabo, não falta liberdade de escolha, e cada um só vê o que quer. É verdade, mas não é sério reduzir a questão a este simplismo enganador. Há em todas as sociedades elites que se destacam nas várias áreas, do saber à política, passando pelas artes. Estas elites são reconhecidas enquanto tal pelo papel influenciador que têm na sociedade; se o interpretam mal, ajudam a criar a confusão em que vivemos.

O mundo warohliano do aparecimento mediático a todo custo, criou uma série de personagens híbridos, capazes de alienar credibilidade em troco de fama. Constatar o modo como este fenómeno se instalou no meio político é uma ajuda fundamental para compreender o alheamento da sociedade em relação à política, apesar de reconhecer a dimensão publicitada dos seus protagonistas.

As máquinas de comunicação política compreenderam o fenómeno e controlam-no. Um Presidente entra em directo em programas matinais, que nada têm a ver com o exercício da sua magistratura, não gosto, não compreendo. Um primeiro-ministro faz circular os seus banhos em águas turquesa e os retratos de um namoro comum, é despropositado, não é relevante.

Um líder partidário vive obcecado com o culto da sua imagem, tornando-se residente de revistas cor-de-rosa, aparecendo com a família, entre divórcios, traições e viagens às Caraíbas, não gosto, é irresponsável. Os deputados, titulares de um órgão de soberania, entregam-se aos debates futebolísticos televisivos, permitindo uma promiscuidade de percepção entre realidades que não podem, de modo nenhum, ser misturadas.

Era bom que 2019 trouxesse mais empenho e seriedade das elites em representar os seus papeis com dignidade. O Presidente começou manifestamente mal, os outros estão a tempo de emendar a mão. Seria uma excelente resolução de ano novo, deixar o seu a seu dono.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.