A recente entrevista da Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, à RTP1, longe de esclarecer, apenas adensou as nuvens que pairam sobre o sistema judicial português. Num momento em que a confiança dos cidadãos nas instituições está fragilizada, a prestação da mais alta magistrada do Ministério Público (MP) tornou, no mínimo, as nuvens ainda mais cinzentas.

O comunicado que levou à queda do governo de maioria absoluta do PS continua a ser um enigma envolto em mistério. A comunicação da justiça, ou melhor, a falta dela, atingiu níveis alarmantes.

Quando um simples parágrafo tem o poder de derrubar um governo, é legítimo questionar: Onde está a transparência? Onde está a responsabilidade? Depois daquele parágrafo, havia condições para o governo continuar em funções? A prática de anunciar publicamente investigações a figuras públicas, como aconteceu com o Dr. António Costa, é um precedente perigoso.

Quantas vezes vimos isso acontecer no passado?

A afirmação “campanha orquestrada contra o MP” lança suspeitas generalizadas sobre “pessoas que têm ou tiveram” relevância na vida pública e mina não só a confiança nas instituições democráticas, como também alimenta um clima de desconfiança generalizada que pode ser nocivo para a própria democracia.

A falácia da separação total

A frase “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” soa bem, mas é fundamentalmente falaciosa. A política, goste-se ou não, tem um papel fundamental na legislação sobre a justiça. Ignorar esta realidade é viver numa bolha jurídica desconectada do mundo real.

Na verdade, esta frase merece uma reinterpretação mais profunda. Devemos entendê-la como um apelo à interdependência e ao equilíbrio entre as esferas judicial e política.

É essencial reconhecer que ambos os setores têm um papel fundamental na manutenção do Estado de Direito e da democracia, exigindo uma responsabilidade partilhada e um equilíbrio delicado entre a independência judicial e a responsabilidade política.

O imperativo da literacia jurídica

Este episódio sublinha a urgente necessidade de maior literacia jurídica entre os cidadãos. Num mundo onde a informação – e a desinformação – circulam à velocidade da luz, é fundamental que o cidadão tenha as ferramentas para compreender e interpretar criticamente as ações e comunicações do sistema judicial.

A literacia jurídica não é um luxo, mas uma necessidade na sociedade contemporânea. Ela capacita os cidadãos a exercerem plenamente a sua cidadania, a protegerem os seus direitos individuais e a navegarem com mais segurança nas situações quotidianas. Além disso, uma população mais informada sobre os seus direitos e deveres pode levar a uma redução significativa de conflitos desnecessários.

Melhorando a comunicação da justiça

A justiça não pode continuar a operar num vácuo comunicacional. O silêncio dos tribunais é preenchido pelo ruído dos media e pelas especulações dos cidadãos, criando uma perceção distorcida e potencialmente prejudicial do sistema judicial.

É imperativo implementar estratégias para melhorar esta situação:

  1. Criação de gabinetes de imprensa especializados nos tribunais, servindo como ponte entre a justiça e a comunicação social.
  2. Formação em comunicação para magistrados e outros profissionais da justiça, capacitando-os a comunicar de forma mais eficaz e clara.
  3. Utilização eficaz de plataformas digitais para partilhar informações, tornando a justiça mais acessível e compreensível para o cidadão comum.
  4. Estabelecimento de porta-vozes oficiais para comunicar com os media, evitando mal-entendidos e especulações.

Mudança necessária

Em suma, a entrevista de Lucília Gago foi uma oportunidade perdida para restaurar a confiança na justiça portuguesa. Em vez disso, deixou-nos com mais perguntas do que respostas, mais dúvidas do que certezas. É hora de uma mudança radical na forma como a justiça se comunica com o público.

A transparência e a clareza não são luxos, são necessidades numa democracia saudável. O silêncio da justiça já não é dourado – é ensurdecedor e potencialmente destrutivo. Precisamos de uma justiça que comunique de forma clara, de cidadãos juridicamente informados e de uma relação mais equilibrada entre justiça e política.

Só assim poderemos aspirar a um sistema judicial que não apenas faça justiça, mas que seja visto a fazê-la, restaurando a confiança dos cidadãos nas instituições que são o pilar da nossa democracia.