Os cientistas políticos debatem há 25 anos as razões do fim da Guerra Fria. Primeiro, atribuiu-se a ‘derrota’ à competição americana, sobretudo sob Reagan. Estudos mais recentes (e menos apologéticos) mostram que as pressões internas e as convicções idealistas de um grupo de líderes levaram ao colapso da União Soviética. Nem sempre as lideranças agem em sintonia estreita e racional com o interesse nacional. E Gorbachev e outros permitiram, por acção e omissão, o suicídio de todo o bloco soviético, tenha sido ele intencional ou irreflectido.
A nova fase estendeu a União Europeia para leste e colocou as tropas da NATO a poucos quilómetros da fronteira russa. Os americanos fizeram da Rússia a herdeira da URSS nas organizações internacionais e garantiram o seu monopólio nuclear. Mas também impediram a sua capacidade de intervenção, integrando-a na sua ordem económica liberal e multiplicando o cerco político-militar. É para recuperar desta humilhação e restaurar a glória anterior da Rússia que o presidente-czar Putin trabalha incansavelmente.
Os sinais não são novos. A tentativa de dissolver o bloco político-económico europeu; a articulação com a China; as guerras no Cáucaso; a ingerência na Ucrânia; a anexação da Crimeia e a intervenção na Síria são passos contínuos da reclamação de um estatuto de potência global. Numa estratégia faseada, vai testando os limites e a resolução dos seus oponentes. A Rússia não se conforma com o statu quo, quer de volta o seu papel mundial.
Perante potências revisionistas, uma fórmula de calma e firmeza é essencial. Obama não cedeu à provocação nem caiu num conflito aberto, mas também não abandonou a pressão, através de sanções e da manipulação do preço do petróleo, danificando a economia russa (e várias outras, pelo caminho). Mas Trump, que tomou posse há menos de ano e meio, está a desmontar o sistema internacional herdado.
Do abandono do Tratado Transpacífico de comércio livre, ao fim dos exercícios militares com a Coreia do Sul (sem nada em troca); do incentivo ao Brexit e à demonização dos parceiros europeus; do elogio a ditadores que perseguem jornalistas e oponentes, segregam minorias e bloqueiam os refugiados à legitimação de grupos racistas e nazis internos, Trump ainda não parou de normalizar o que seria para todos nós impensável há dois anos.
Só no espaço do último mês, Trump insultou os seus aliados e abriu uma guerra comercial na reunião do G7; promoveu a ruptura da UE e ameaçou publicamente sair da NATO. Pode dizer-se que, apesar do barulho do espectáculo-Trump, as realidades se mantêm: a UE existe, as relações entre grupos sociais e económicos dos dois lados do Atlântico Norte são intensas e a aliança da NATO ainda perdura. Mas a verdade é que as ideias e a visão dos adversários também pesam.
A eficácia da NATO, a aliança político-militar mais forte do globo, depende da articulação entre realidade e percepção. Por um lado, congrega um enorme poder militar, sob a forma de armas nucleares, tropas convencionais e cooperação de sistemas de informação. Por outro lado, articula Estados com valores e interesses comuns e com capacidade de decisão e de acção. O sucesso da NATO até hoje não foi o seu exercício militar. Foi a capacidade de disuassão dos oponentes, que nunca arriscaram um confronto pela convicção de uma retaliação. A incerteza sobre esta determinação convida à criação de alternativas pelos seus membros – e à acção de oponentes.
Esta semana, acabámos por isso de testemunhar o momento histórico da ruptura do sistema internacional. Um presidente americano anunciou o fim do compromisso político e militar com os europeus, repudia as suas próprias instituições e abraça o adversário, cuja força o seduz. Não é apenas um potencial acto de traição. Pode também ser o fim do predomínio americano. É, em espelho, um acto de suicídio do ocidente e de convite à aventura dos adversários, cujo impacto só vamos ver mais tarde. Nunca houve uma transição pacífica de sistema internacional; e não é expectável que a próxima o seja.
O fim da protecção americana deveria ser motivo suficiente para a união e a autonomização dos europeus. Mas cambaleamos entre a ciática, a cacofonia e o vírus do populismo que nos divide. No terreno neutro de Helsínquia, só a Rússia compareceu. Putin sorriu, a vingança serviu-se fria. Se ainda não estiverem a soar as campaínhas em todo o continente europeu, já sabemos que é de sonâmbulos rumo ao conflito de que falamos. Uma vez mais.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.