Quando o Bloco de Esquerda chegou à vida política, fez da bancada parlamentar um palanque de denúncia de casos e de questões sobre negócios do Estado, feitos por vezes por agentes políticos com ligação aos beneficiários directos e indirectos desses negócios. A escola da denúncia teve expressões diversas, consoante os protagonistas, os temas, os espaços de poder – o tom subiu com Durão Barroso e os confrontos com Sócrates foram violentos – mas nunca foi abandonada.
Essa abordagem trouxe vantagens: com grande eficácia comunicacional, denunciava casos concretos como resultado das políticas contestadas; quebrava o tom morno da política nacional; geria bem os ritmos dos media; aumentava o impacto do BE além do seu real peso social e eleitoral. Mas incluiu sempre o risco do deslize fácil para o populismo de esquerda. Na maioria das ocasiões, o BE reduziu o risco com proposta política. Não terá sido fácil, sabendo da sua natureza compósita e das linhas internas divergentes. De vez em quando, deslizou.
No caso da política de habitação, as ideias do BE para a autarquia de Lisboa eram sensatas e positivas: favorecer o transporte público; proteger os inquilinos de despejos abusivos; criar bolsas de arrendamento; aproveitar e ampliar o imobiliário público para uma política de habitação acessível que arrefecesse o mercado, são propostas justas e urgentes numa cidade em revolução acelerada.
O elefante no meio da sala é o empobrecimento nacional, a magra progressão salarial dos portugueses nos últimos 20 anos e a desigualdade de rendimentos, que deixaram as classes médias nacionais expostas à concorrência das suas congéneres europeias e os pobres à mercê de qualquer flutuação no mercado de arrendamento.
O tom justiceiro do BE contra a especulação imobiliária e o alojamento local capitalizou politicamente o descontentamento popular. Mas também revelou a adopção de uma retórica de ganhos políticos rápidos, inflamada com chavões e com pouca atenção à diversidade, agitando o ódio aos proprietários e ao alojamento local em bloco. As respostas simples a problemas complexos são pasto fácil para a intolerância. E por isso a dimensão deste caso.
Os eleitos não têm que ser santos. Mas a plataforma política da eleição de Robles obrigava-o a uma especial responsabilidade. Espera-se de um activista um nível de consciência sobre o funcionamento do sistema no qual intervém e a modulação da sua acção em coerência ética com a sociedade que defende. Não porque a lei lhe impõe coisa alguma ou limita a sua acção, mas porque ele escolhe fazê-lo – e com isso reforça a consonância entre prática e discurso e o vínculo entre eleito e eleitores. Suspeito que o Robles político não passaria no teste do Robles eleitor. No deste eleitor, não passou.
O seu comportamento é ainda mais grave por caucionar a naturalização da especulação imobiliária. Com grande expressão mediática, os seus detractores à direita concordaram com Robles: ele não fizera nada de ilegal, usara as regras em vigor e, (acrescentaram) de forma natural, vendo uma oportunidade de negócio, quis maximizar o lucro. A crítica da incoerência centra-se no ataque ao discurso do BE, não à prática especulativa.
Ora, uma justa crítica pela esquerda é que comprar para especular não era a única maneira de transformar este investimento numa actividade lucrativa, sobretudo tendo em conta a procura de arrendamento de longa duração no centro de Lisboa.
Todos os contornos do caso, desde a compra de um imóvel em Alfama, alienado à Segurança Social, à venda por um preço astronómico numa agência especializada em imobiliário de luxo, passando pela configuração da reabilitação em formato indicado para alojamento local é demasiado escandaloso para suportar. O dano que o Robles cidadão fez à agenda de vários movimentos sociais que o Robles político promovera é por isso gigantesco.
A reacção do BE, que tentou proteger o seu vereador, é outro teste fracassado. Porque perante o ocorrido, não deveria haver dúvidas: retirar-lhe a confiança política, partir para a denúncia de quem criou as condições para estes negócios. Foi Assunção Cristas quem facilitou os despejos. Foi Mota Soares o ministro a alienar património imobiliário da Segurança Social. Enquanto se discute Robles, como agente deste negócio concreto, escapam entre os pingos da chuva os responsáveis políticos que permitiram estes e muitos outros negócios especulativos. Que, de facto, nos expulsam os moradores de Lisboa.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.