Ao longo do dia de hoje, várias mulheres se apresentarão a provas para os mais altos cargos políticos do mundo. As mudanças sociais e culturais que abriram espaço para este cenário fizeram-se num passo lento mas aparentemente irrevogável. Há cada vez mais mulheres a chefiar empresas, já predominam nas universidades e ocupam lugares de direcção em organizações e na política. As jovens raparigas têm hoje uma diversidade de modelos para inspirar a sua representação e construir um novo tipo de ambições para o seu futuro.

A consciência sobre discursos, comportamentos e representações plenas de sexismo cresceu. Isso é útil para desamarrar a sociedade dessas estruturas e libertar mulheres e homens da tipificação de papéis impostos. Mas há também um ricochete inesperado em que a condição de género readquire de forma inversa uma função de promoção e anátema.

Na ONU, Ban Ki-moon lançou o mote. Era tempo da organização ser liderada por uma mulher. A declaração cometia duas infracções: revelava parcialidade e interferência; usava a condição de género para deslegitimar concorrentes. O incoerente Secretário-Geral da ONU não tem qualquer legado de promoção da igualdade de género na organização. Mas veio estimular a oposição ao mais forte candidato, escolhendo o único critério que este não poderia cumprir. A declaração não apoiava ninguém, mas desqualificava todos homens como candidatos – Guterres especialmente.

Salvaguardadas as distâncias, a campanha norte-americana contaminou-se com alguns destes tiques. Hillary centrou a sua mensagem na experiência e na sua condição de mulher, fazendo da sua eleição uma peça da afirmação feminina. Mas Bernie mostrou a sofisticação do eleitorado, quando quase a derrotou após virar o debate para a iniquidade social, denunciar a sua ligação aos poderosos e reduzir a pó o argumento de género.

Sim, Trump reserva às mulheres um papel decorativo e submisso e a sua base encerra o fundamentalismo, o ódio racial, o proselitismo religioso e o conservadorismo. Mas reduzir o eleitorado de Trump ao “white trash” sexista é uma ingenuidade. Há um coro de gente desiludida com o ‘establishment’ e que a vê como parte dos poderosos. Trump explora a sua longevidade política, faz dela o bode expiatório dos derrotados da globalização e oferece-lhes um alvo para odiar. E Hillary enfrenta problemas na mobilização dos anti-Trump. Para muitos, ela é o mal menor – em quem votarão no último momento, aterrorizados com Trump, mas sem confiar nela.

À esquerda, há uma espécie de ‘blackout’ da discussão política. Quaisquer críticas à candidata são tidas como manifestação de sexismo interiorizado. Esta reacção pavloviana coloca Hillary fora de escrutínio e desloca o debate para a natureza e o discurso de quem a critica – que passa então a ter de defender-se. Durante muito tempo, ser mulher foi obstáculo para se ser candidata, mas agora parece que não se pode questionar a política de uma mulher candidata sem ser sujeito à acusação de sexismo escondido. A pressão agrava-se ainda mais se o crítico for um homem.

A política também precisa de símbolos. Eleger um negro para a presidência norte-americana terá efeitos nas consciências a longo prazo. O mesmo acontecerá com Hillary, se (esperemos) for eleita. Mas eleger Obama não libertou os negros do racismo e da exclusão social a que estão sujeitos. Reduzir esta eleição à escolha de um totem é o que o povo americano parece querer recusar – e daí as dificuldades democratas. Afinal de contas, se bastasse ter mulheres como líderes para emancipar a condição feminina, Thatcher, Merkel ou Theresa May já nos tinham resolvido o problema.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.