O mainstream mediático tem passado a ideia, ao longo dos últimos dois anos e meio da guerra na Ucrânia, de que a Rússia é chefiada por um indigente louco, é fraca e incapaz no campo de batalha. Sem capacidade industrial sofrerá facilmente uma derrota estratégica. Essa apresentação simplista, deliberadamente falsa e enganadora das capacidades da maior potência nuclear do globo é perigosa. Criou nos analistas do ar condicionado perceções enviesadas da realidade. Não obstante a falsidade óbvia, a tese foi profusamente difundida e convenientemente subscrita.

Mas nada do propalado se concretizou. A economia russa não só não descambou como se reforçou ultrapassando a alemã (com base no PPP), e Putin reforçou a sua posição. Ao invés, a Ucrânia está feita num farrapo. A lista dos problemas que atormentam Kiev é longa. A ajuda militar insistentemente implorada não chega na quantidade nem com a qualidade desejada; Kiev não consegue mobilizar e treinar capazmente novos recrutas, nem produzir energia suficiente para o inverno que se aproxima; Zelensky tem uma taxa de aprovação abaixo dos 20%, etc. Quem questionou a infantil subvalorização do potencial estratégico russo foi malevolamente apresentado como um membro da longa manus desinformativa de Moscovo.

O caso ucraniano traz-nos à colação a incapacidade de se aprender com os repetidos erros de cálculo estratégico de Washington. Esquecemos as armas de destruição massiva de Saddam Hussein, para não falar do Vietnam, Afeganistão e Líbia, entre outros, para os quais fomos de uma ou de outra forma arrastados, sem sermos ouvidos e sem participarmos na decisão. O fim da intervenção internacional no Afeganistão é o exemplo mais recente do que se acaba de afirmar. Tal, justificará, porventura, avaliações mais sensatas antes de se comprar o bilhete e se embarcar no comboio.

Tardiamente, começa-se agora a perceber aquilo para que poucos têm vindo a alertar. O recente relatório elaborado por Mario Draghi enumera os desafios com que a Europa se confronta sem, no entanto, explicar as suas causas diretas e imediatas. Recentemente, o “Washington Post” (WP) alertava para o erro de se subestimar Moscovo, ao afirmar que “os EUA e a UE já não acreditam que a Rússia vá perder no campo de batalha, ou que a sua economia vai ser destruída pelas sanções.” “A Rússia continua a ser um poder formidável. O Ocidente não deve presumir que é uma força militar esgotada. E, é por isso, que os parceiros da Ucrânia estão agora mais inclinados para negociar e estão a dar à Ucrânia várias pistas nesse sentido.”

Um outro artigo de opinião publicado também pelo WP, afirmava que a Ucrânia está a sangrar e não consegue lutar indefinidamente. Apoiar a Ucrânia “as long as it takes” não corresponde à realidade deste conflito. O chanceler alemão Olaf Sholz veio juntar-se aos que defendem “a necessidade de “explorar possibilidades” que “abram uma saída pacífica” para guerra da Rússia contra a Ucrânia”, falando abertamente em ser tempo para se pensar seriamente em conversações.

Alguns dos patrocinadores de Kiev começaram a questionar o realismo dos objetivos estratégicos da aventura ucraniana e a perceber que Kiev não tem capacidade para expulsar as forças russas do seu território, mesmo com ajuda internacional.

Numa entrevista ao The New York Times, o antigo chairman do Comité Militar da NATO e presidente da Chéquia Petr Pavel, apoiante indefetível da Ucrânia, apelava ao realismo de Kiev e à necessidade de reconhecer que terá de fazer cedências territoriais, indo ao ponto de considerar idealista o sonho da Crimeia retornar ao controlo ucraniano.

O desespero de Kiev aumenta quando percebe que não vai recuperar os territórios perdidos, e que a ajuda internacional vai reduzir-se, qualquer que seja o presidente que ganhe as eleições nos EUA. Como se vê o apoio dos EUA tem limites. Não pode continuar indefinidamente a alimentar o buraco negro ucraniano, sem ter boas notícias. Os pacotes da ajuda têm vindo a reduzir. Aumenta a preocupação com a diminuição das reservas norte-americanas e o que isso pode vir a representar para a sua segurança nacional. As sondagens na Ucrânia mostram uma sociedade cada vez mais cansada da guerra, e o aumento dos que estão dispostos a considerar a paz sem uma vitória total.

Zelensky e os seus próximos sabem que não conseguirão vencer o confronto com Moscovo. Com o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés, ensaiam uma fuga para a frente, que passa por escalar a guerra tentando, entre outras ações, desencadear um conflito entre a NATO e a Rússia. A crença e a acrisolada fé de que as deep strikes e a utilização sem restrições de armas ocidentais de longo alcance vão alterar o curso da guerra está novamente na ordem do dia.

Nesta ilusão são acompanhados, por exemplo, pela “esclarecida” primeira-ministra dinamarquesa Mette Frederiksen: “acabemos com a discussão sobre as linhas vermelhas. Não, não, as linhas vermelhas são um dos melhores filmes de comédia” Amedrontado, Putin continuará a fazer bluff e não vai reagir. Fazendo escárnio da paciência estratégica do Kremlin, alguns conselheiros de Kiev empurram-na para o precipício.

Aproveitando a ida à Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, Zelensky vai apresentar o seu “Plano para a Vitória”, ao atual ocupante da Casa Branca e à candidata Kamala Harris para os convencer da bondade das suas ideias. Donald Trump declinou o encontro com o Presidente ucraniano. Embora se desconheçam os detalhes do plano, as ideias principais são públicas.

O “Plano para a Vitória” considera a adesão acelerada de Kiev à NATO e beneficiar, entretanto, de um estatuto análogo ao proporcionado pelo artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte; ter garantias de segurança por parte dos países ocidentais, semelhantes às de um pacto de defesa mútua aquando da adesão à NATO; assistência financeira para a recuperação económica do país. O plano incluirá ainda a utilização do equipamento ocidental com menos restrições, e a possibilidade de forças da NATO serem colocadas em território ucraniano libertando os contingentes de Kiev para combaterem no leste do país.

Com a informação de que se dispõe quando este texto foi redigido, o “Plano para a Vitória” de Zelensky não passa de um ato de desespero, de alguém desfasado da realidade. É completamente inverosímil admitir que Paris e Berlim aceitem neste momento a adesão da Ucrânia à NATO, ou as garantias de segurança exigidas. O Plano não passa de uma lista de desejos, sem surpresas e sem propostas que alterem o curso da guerra a seu favor.

A recente entrevista de Zelensky ao “The New Yorker” foi confrangedora pela falta de clarividência e pelo assustador desencontro com a realidade. Alguém terá de lhe explicar que quem está na mó de baixo não dita ao adversário os termos da paz. O seu plano de vitória esbarra com a realidade do campo de batalha onde as forças ucranianas perdem terreno todos os dias. Quando questionado sobre o objetivo do seu plano, Zelensky respondeu “que não sendo apenas isso, seria enfraquecer consideravelmente a Rússia, o que ameaçaria a própria posição de Putin”.

Ao mesmo tempo que diz que se o seu programa não for aprovado por Washington irá para negociações, coloca a possibilidade de continuar a negar a possibilidade de perdas territoriais, e tornar a situação numa espécie de guerra eterna, defendendo uma solução diplomática, mas sem negociações.

As suas contradições são cada vez mais notórias e estendem-se a alguns comentadores. O “The Times” dava conta disso quando entrevistou alguns observadores atentos sobre o “plano de vitória” de Zelensky. Se, por um lado, estão convencidos de que a Ucrânia não será capaz de recuperar os seus territórios a curto ou médio prazo – as negociações para Kiev serão “muito, muito, muito difíceis e dolorosas” – por outro, afirmam que congelar a guerra na linha da frente e negar à Ucrânia a adesão à NATO, “seria um resultado catastrófico” e “definitivamente não pode ser a base para negociações”. Como Zelensky, não sabem o que querem.

Um artigo no “Politico” interrogava se estamos a fazer as perguntas suficientemente difíceis sobre a Ucrânia. Como dizia o autor, “quando a poeira assentar, será que a cobertura mediática do Ocidente terá uma nota de aprovação, ou será que, por vezes, permitimos que a nossa simpatia pela causa ucraniana ignore assuntos que não devíamos?” Quanto tempo mais demorará a perceber a dura realidade de se ter entrado no comboio errado?