Numa época em que tanto se discute a memória e o impacto do passado no presente, vale a pena pensar qual o valor que realmente atribuímos ao passado. Será uma fonte de ensinamentos para o futuro? Será que todos olhamos o passado na perspetiva da memória coletiva ou no esquecimento coletivo? Olhamos e reconstruímos o passado da mesma forma? Até que ponto o passado constrange a forma como agimos no presente? Provavelmente, muitos de nós já se confrontaram com todas estas questões, quando tentamos interpretar o presente.
O valor do passado oscila, é bem verdade, mas é sempre uma referência ao comportamento presente e futuro. Quando falamos que algum facto, evento ou situação não se poderá repetir, estamos sempre, mesmo que negativamente, a balizar algo pela experiência passada. Assim sendo, o passado está tão presente nas nossas vidas que nos esquecemos da sua importância ou como analiticamente este pode prover auxílio nas decisões do presente.
Este texto é, pois, uma reflexão sobre o papel do passado nos desafios do presente.
Não se trata da comparação entre o contexto pandémico atual e a história das pandemias precedentes, muito comum nos dias de hoje. Antes procuramos a reflexão sobre alguns eventos presentes, à luz dos antecedentes do passado, tentando confrontar as diferentes memórias e esquecimentos relativamente a tempos anteriores. Num período tão conturbado, em que se debatem as medidas de combate à pandemia e os seus efeitos na economia, na sociabilidade, mas também na política, vale a pena olhar criticamente o passado.
Em termos globais, a pandemia tornou notórios os aspetos negativos da globalização e expôs as suas debilidades. Esta perceção não é completamente nova, mas aprofundou-se. Pela primeira vez, questionam-se os princípios do livre comércio e da deslocalização da produção industrial e agrícola. Se a globalização facilitou a mobilidade, a verdade é que possibilitou o acréscimo de todos os modos de mobilidade, o que inclui o transporte acelerado de vírus. Tal como a mudança climática e a sustentabilidade não podem ser tomadas como problemas nacionais, as doenças virais também são problemas globais. A ideia da localidade de um fenómeno é desafiada pela rapidez de movimento de pessoas, bens, serviços e ideias. Para o bem e para o mal a globalização trouxe isso.
Relativamente a Portugal, revelou as grandes dependências que Portugal tem, não só no domínio das importações, mas também das exportações. Não falharam apenas os produtos industriais como máscaras ou ventiladores; faltaram também os turistas ou os alunos internacionais que asseguram uma parte da procura no setor do turismo e no do ensino superior. Esta situação revelou a debilidade do país e a pouca resiliência de daí pode resultar. O sector que mais tinha crescido recentemente, promovendo empregabilidade, se bem que pouco especializada, era exatamente o turismo, dependente dos fluxos de viajantes. Aliás, Portugal como um todo foi convidado a participar dessa aposta na hospitalidade, melhorando a oferta, mas raramente refinando a procura, mantendo muitas localidades e zonas do país dependentes do turismo de massas.
Sendo um setor dinâmico e em crescimento, tomemos o turismo como exemplo. Esta atividade foi alastrando a todo o território e mudando a organização das comunidades locais, gizando toda a economia local em prol desta atividade. Os barcos de pesca tornaram-se barcos de passeio de turistas, os terrenos agrícolas foram ocupados por construção, os centros da cidade esvaziados, sem existirem planos de contingência ou de sustentabilidade.
Contudo, esta dependência de Portugal face ao exterior é antiga, bem como a debilidade dos setores produtivos da economia. Por que razão ainda não se pensou num desenvolvimento tomando em conta essas idiossincrasias que vêm do passado? Por que razão o olhar para o futuro, com as suas promessas, parecia libertar o país das suas dependências? Por crença no progresso ou simplesmente por falta de pensamento crítico face ao passado?
Um exemplo, entre tantos outros
Mantendo o exemplo do turismo e de uma região depende massivamente deste setor de atividade, refiro aqui o caso concreto das dragagens do rio Arade para que navios de passageiros com maior tonelagem, conhecidos como cruzeiros, possam entrar no rio. A embocadura do rio Arade, banhando de um lado Portimão e de outro Ferragudo, constitui um ecossistema frágil, já anteriormente submetido a processos de dragagem e preenchimento de areias em algumas praias, onde repousa uma assinalável riqueza de materiais arqueológicos subaquáticas. Região de ocupação humana desde há milénios, foi palco de batalhas navais envolvendo vikings e de processos de transporte importantes ao longo do rio, ligando Silves à zona costeira, o que no passado de ocupação islâmica foi determinante na organização governativa do território.
Agora, numa tentativa de reanimação do turismo de cruzeiro, pretende-se prover Portimão de mais condições para receber navios de maior dimensão, podendo entrar na embocadura do rio. Este projeto obriga a uma intervenção profunda no rio, tendo a municipalidade de Portimão evidenciado o facto de existir uma preocupação com a preservação do material arqueológico, sendo a intervenção precedida de uma intervenção arqueológica. Contudo, no Estudo de Impacto Ambiental – Resumo Não Técnico, é referido o facto de esta intervenção ter impacto direto em áreas de reserva ecológica, com o risco de alagamento, em algumas zonas.
Significa isto que toda a zona circundante à intervenção será afetada. As dragagens no rio Arade não são uma novidade. Nas décadas de 1970 e de 1980 existiram intervenções que mudaram a paisagem das praias locais, com consequências diretas em algumas áreas que levaram anos a recuperar a qualidade das areias e águas. Lembro-me desse período, por duas razões, porque a Praia Grande foi a praia da minha primeira infância e porque a minha família materna é originária de Portimão e Ferragudo. Na minha memória e experiência pessoais estão bem presentes as consequências e o elevado preço das intervenções direcionadas para o turismo massivo que arrancaram figueiras e alfarrobeiras para construir casas com vista para o mar. No espaço de uma década eu perdi o cheiro a figos que inebriava o ar (que ainda hoje é para mim o odor do Algarve) e a paisagem salpicada de alfarrobeiras e amendoeiras. Em poucos anos despedia-me dessas texturas e da praia em que aprendia a nadar.
Segundo a minha memória pessoal e valorizando a minha experiência do passado, as dragagens que agora se propõem deverão ter no mínimo uma discussão prévia e aprofundada e incluir uma reflexão que vá para além dos efeitos imediatos desta intervenção. Neste debate devem ser também pensados as razões que justificam esta intervenção e confrontá-las com aquilo que a pandemia nos ensinou: que a preservação do local (seja produção ou serviços), mais do que um produto social ou cultural, é um produto de resiliência socioeconómica e política.
De acordo com a memória coletiva dos naturais de Ferragudo, espelhada na própria ação da Junta de Freguesia, as dragagens também são altamente questionáveis. Do lado de Portimão, existe provavelmente outra perspetiva, porque no passado as repercussões das intervenções anteriores também foram diversas e porque a cidade acredita nos benefícios imediatos desta intervenção. De facto, esse tem sido um dos problemas de Portugal: a resolução de problemas imediatos turva a estratégia e algum planeamento de mais longo prazo. E neste arrazoado, vale a pena então olhar e valorizar o passado.
Contar a História, repensar o presente através de olhos alheios
Partimos das propostas pensadas em dois livros recentemente publicados com a particularidade de serem reflexões sobre a História de Portugal, mas pela mão de autores estrangeiros que introduzem necessariamente uma perspetiva exógena sobre os acontecimentos do passado português. Os dois livros dedicam-se a analisar aspetos da Dinastia de Bragança, o primeiro centrado em D. Maria I e o segundo na dinastia como um todo.
O livro de Mary del Piore, intitulado “D. Maria I: As Perdas e Glórias da Rainha que Entrou para a História como ‘A Louca’”, editado em Julho passado pela Casa das Letras. A autora desafia o senso comum e as presunções menos atentas de que D. Maria I teria sido uma rainha sem vontade própria e sem legado governativo. Acossada pela sua situação de mulher e pela inimizade para com o Marquês de Pombal, primeiro-ministro que trabalhou estreitamente com o seu pai, D. José, a rainha não teve uma tarefa fácil. A perspetiva da autora introduz a análise de documentos que conduzem a um olhar crítico da ação de D. Maria I e, também, a uma contextualização na mentalidade da época, recorrendo a exemplos externos. Significa que existe uma preocupação da autora em enquadrar no tempo e no espaço a governante sem, no entanto, escamotear as suas debilidades.
Este livro lança obrigatoriamente um olhar não só sobre a governação do reino de Portugal e de suas colónias, como também uma visão das dificuldades que estes territórios então enfrentavam, inclusivamente na dependência de Portugal das remessas ultramarinas. Escrito fluidamente, cientificamente correto, mas em simultâneo acessível a qualquer leitor, o livro de Mary del Priore permite uma variação face ao que em geral era ensinado sobre o período de governação da primeira rainha (não apenas consorte) de Portugal. Igualmente, não deixa de ser uma biografia, acompanhamento todos os momentos da sua vida, mas recentrando-os sempre na sua função governativa.
O segundo livro, da autoria de Malyn Newitt, autor de diversos livros sobre Portugal e o seu império colonial, intitula-se “Os Braganças: Ascensão e Queda das Dinastias Reinantes de Portugal e do Brasil, 1640-1910”, e foi editado em maio de 2020 pela Texto Editora. Como o título indica, foca-se na dinastia como um todo e na sua cisão entre a Casa Real Portuguesa e a Casa Imperial do Brasil. O livro tem o mérito de ser um testemunho da história portuguesa em inglês, pois o que lemos na edição portuguesa é a tradução de um original, publicado na Grã-Bretanha e justificado pelo autor pelos parcos estudos históricos sobre Portugal em língua inglesa.
O autor retoma alguns aspetos da tradição histórica mais tradicionalista portuguesa, como por exemplo, acompanhar cada um dos reis do seu respetivo cognome, traçando numa linha cronológica a evolução da governação de Portugal e do Brasil. É também hábil a gerir os momentos de ascensão e grandiosidade da dinastia e os períodos de contestação. Contudo, aqui a contextualização é direcionada entre os padrões que se afirmavam na Península Ibérica, apresentando-se o enquadramento na política internacional de uma forma menos assertiva. Igualmente, a mentalidade da época aparece, por vezes, como criticável em vez de contextualizada. O livro está bem ilustrado, o que permite ao leitor visualizar personalidades e momentos, ajudando-o a enquadrar a perspetiva histórica.
Entre a História e o futuro
Apesar das duas visões da História de Portugal não serem idênticas, representam como autores não portugueses veem e estudam o país e como olham as suas fragilidades e as suas dependências. Estes olhares permitem aceder à interpretação descentrada da realidade nacional e refletir sobre a evolução do país durante a derradeiro período monárquico. Já então, certas características eram apontadas à governação e elites locais, entre estas a dificuldade em seguir estratégias duradouras de desenvolvimento do país e a difícil gestão que os próprios monarcas tinham de fazer para sossegar os vários setores da sociedade. A reincidência de determinadas características ou decisões é, igualmente, mencionada.
Olhar para o progresso e para as grandes obras hoje, não é muito diferente do que se fez anteriormente. Talvez apenas falte debate e uma visão holística dos problemas, em que o localismo só deve existir se significar resiliência para as populações e em que cada projeto deverá servir várias comunidades. Isto é tão válido para as dragagens do Arade como para qualquer outro projeto local, nacional ou europeu. A intervenção local tem de ser pensada globalmente, assim como a intervenção global também tem de ser pensada localmente.