O Presidente da República foi a Washington visitar Donald Trump e, a crer nas palavras que proferiu, o objectivo da visita era convencer o seu anfitrião de que Cristiano Ronaldo é o melhor jogador de futebol do mundo.

Sem saber muito bem o que dizer, quer pelas dificuldades cognitivas que lhe são reconhecidas, quer pela falta de oportunidade das palavras de Marcelo, Trump disse-lhe que, se Ronaldo se candidatasse ao seu cargo, Marcelo não seria reeleito. Cheio de si e desprovido de juízo, Marcelo respondeu-lhe que Portugal é muito diferente dos EUA, insinuando que cá e ao contrário de lá, ninguém seria eleito Presidente só por ser famoso.

A internet – portuguesa e americana – delirou. Compreensivelmente, já que a repulsa que Trump provoca às pessoas de bem convida à satisfação com tudo o que o afronte. Mas como costuma acontecer sempre que a internet – portuguesa e americana – se pronuncia sobre algo, a reacção foi despropositada. Não por ser injusta para com Trump – não foi – mas por deixar o Presidente português “safar-se”.

Em primeiro lugar, o episódio, para quem tenha olhos na cara e os queira manter abertos, põe a nu a duplicidade da “persona” pública de Marcelo. Para se promover, o Presidente não se cansa de bajular Ronaldo, esforçando-se por ser filmado tantas vezes quando possível a abraçar “o melhor do mundo”, na esperança de que a popularidade, como a gripe ou o herpes, seja contagiosa.

Mas quando lhe deu jeito, para parecer que estava a ridicularizar Trump e assim conquistar pontos junto da opinião portuguesa que (justificadamente) execra o primeiro presidente laranja dos EUA, não hesitou em desconsiderar (pelas costas, para a indignidade ser ainda maior) Ronaldo, insinuando que não passa de um “simples” jogador de futebol e, como tal, supostamente inapto para desempenhar funções públicas e sem qualquer capacidade para estar à altura de Marcelo (provavelmente, está enganado).

Em segundo lugar, o Presidente e os que se deleitaram com a sua tirada esquecem-se que o próprio Marcelo só foi eleito para o cargo que ocupa – ou pelo menos, só ganhou a eleição da forma como a ganhou – por ser ele próprio uma celebridade televisiva, uma espécie de Kardashian política sem implantes e com menos vergonha. Ou seja, a natureza do poder político de Marcelo é a mesma da de Trump: o resultado de uma vida a vender a sua imagem, e centrado na mais pura e banal superficialidade.

Dir-me-á o leitor que Trump é um homem cruel, que não hesita em provocar o sofrimento de milhares de pessoas se isso lhe trouxer a aprovação do seu eleitorado (como se viu recentemente na questão da separação de famílias nos postos de fronteira com o México), corrupto até ao tutano e, consciente ou inconscientemente, um agente dos interesses do não menos cruel e corrupto governo russo, enquanto Marcelo é um homem bom, de “afectos”, que ajuda os sem-abrigo e até foi consolar os pobres velhotes vítimas dos incêndios que infernizaram o interior do país no ano passado. O leitor estará certíssimo quanto ao Presidente americano, mas proporcionalmente errado quanto ao nosso.

Como o próprio Marcelo recentemente admitiu sem sequer ter noção disso (apesar da fama em contrário, Marcelo não se distingue pela perspicácia), os “afectos” e a “proximidade” com “o povo” não passam de uma estratégia para aumentar a sua popularidade e poder pessoal. Marcelo aproveita-se oportunisticamente da genuína simpatia dos que o adoram. Marcelo não é um político “afectuoso”: é um político que vampiriza o apreço que muitos cidadãos têm pela celebridade que antes viam todos os domingos na TVI e hoje vêem todos os dias em todos os canais, com que alimenta o seu projecto de poder pessoal.

O caso das visitas às populações afectadas pelos incêndios foi particularmente revelador. Não contesto que, para aquelas pessoas, a visita e as palavras de Marcelo tenham sido um real conforto naquela hora de sofrimento, cuja dimensão não consigo sequer imaginar. Mas para fazer essa visita e dar esse conforto, Marcelo não precisava de ter as equipas de reportagem das televisões coladas a si no momento em que aquelas desgraçadas vítimas choravam nos seus braços e desabafavam aos seus ouvidos.

O Presidente poderia – e deveria – ter dito aos jornalistas e cameramen para não filmarem aqueles momentos, e que apenas gravassem os outros momentos da visita. Não o fez. E não o fazendo, convida a que se forme a ideia de que não o fez porque, mais do que consolar aquelas pessoas, queria ser visto a consolar aquelas pessoas. Ou seja, fica a impressão de que Marcelo – como Trump – explorou o sofrimento de gente desesperada apenas e só para conquistar a aprovação do seu eleitorado. Como Trump, Marcelo merece tudo menos essa aprovação.

É claro que o Presidente, ao contrário do seu congénere americano, é extraordinariamente popular. Mas essa popularidade, só por si, demonstra apenas que pouco mais separa Marcelo de Trump do que a capacidade (que o primeiro tem e o segundo não) de mascarar a natureza das suas acções. O que, mais do que um mérito de Marcelo, é um demérito de quem não o vê como ele é.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.