Poucas coisas são vistas e adoradas como programas televisivos em torno da confeção de comida. Do formato convencional de chefs a prepararem receitas para o telespetador evoluímos para reality-shows competitivos e populares como “Masterchef”, “Hell’s Kitchen” e tantos outros. Mas por mais que nos deixemos seduzir por estes programas, nenhum deles realmente capta a adrenalina do que se passa diariamente na cozinha de um restaurante.

Até que finalmente surgiu “O Urso”, a série de oito episódios que estreou no início de outubro em Portugal pela Disney. Este não é um reality-show, antes se centra num drama familiar em torno de um restaurante de Chicago, EUA, que vende sanduíches de carne. O protagonista Carmen “Carmy” Berzatto (Jeremy Allen White revela-se um ator absolutamente hipnotizante) é um ex-chef de cozinha que regressa a Chicago para salvar o restaurante do irmão depois deste ter cometido suicídio. Estão enterrados em dívidas e à beira de fechar, mas ele compromete-se a tentar pôr ordem no caos. E que caos!

De certa forma, Carmy evoca a figura de Anthony Bourdain, um homem intenso e perseguido pelos seus próprios demónios. O realismo das cenas é irrepreensível em toda a série. E até respondem a uma das questões mais importantes: “Como sobreviveram à pandemia?”. Carmy apenas quer salvar o restaurante, enquanto está dominado pelo luto e por toda a angústia de uma relação mal resolvida com o irmão. O seu perfecionismo na cozinha contagia toda a equipa, que tem de aprender novas técnicas e formas de organização.

Mais. Não se coíbem a expor o inferno das burocracias e inspeções, a difícil e tensa colaboração em equipa, a pressão infernal dos prazos, muitas vezes inimigos da qualidade, as normas de segurança que têm de ser respeitadas, o ritual da limpeza diário. E verifica-se um curioso antagonismo entre os funcionários que saíram de escolas de culinária e os veteranos de cozinha que acumularam anos de “escola de vida”.

Mas como acontece com muitos perfecionistas, chega um dia em que o mundo estraga todos os planos de Carmy e abre-se o abismo. Não irei revelar mais sobre a série, porque espero que todos possam vê-la e aprender como se desenrola a rotina de uma verdadeira cozinha profissional. Este é um mundo em que se vive na pele uma realidade que nos esmaga e não tem pena de nós.

Como pessoa que é membro de uma família que se dedicou ao mundo da restauração, nunca julguei que iria ver uma série ou programa que fizesse jus a esse mundo. Hoje, o universo da restauração pós-pandémico já recuperou alguma da sua normalidade, embora com cicatrizes profundas. O trabalho é mais volátil, muito do que ficou para trás ainda está por resolver e a verdade é que muitos não resistiram, sendo imensos os estabelecimentos que mudaram de gerência.

É um mundo mal compreendido, talvez um pouco romantizado, grande parte dele constituído por um tecido empresarial pouco qualificado – e que agora se prepara para uma nova crise em que as soluções apontadas caminham para a necessidade de investimento que, na prática, equivale a endividamento. É preciso uma grande dose de fé para todos acreditarem que, num mundo em transição e imerso numa crise profunda, os serviços tradicionais podem voltar a ser como eram.