O mais longo bull run das bolsas tinha de acabar um dia. Ninguém esperava, contudo, que fosse desta forma. A sequência de eventos poderia facilmente ser confundida com o enredo de um filme apocalíptico.

Um novo vírus aparece numa desconhecida cidade chinesa, atravessa fronteiras e obriga ao ‘fecho’ de cidades, regiões e países inteiros.

Os extras do filme (nós) desatam a comprar desinfetante, papel higiénico e enlatados para armazenar em bunkers, cheios de bidons de combustível. Logo a seguir fecham-se em casa, criando cidades-fantasma, onde tudo está encerrado.

Os protagonistas (os políticos) passam semanas na indecisão, presos entre a inércia provocada pela noção de alarmismo e a mão pesada de medidas draconianas para evitar o pior.
Os outros atores, os do sistema de saúde, tentam lidar com uma crise inédita da melhor forma e com recursos escassos.

Num outro subplot do guião, os atores financeiros parecem avestruzes: enterram a cabeça na areia durante semanas a fio, fingindo que nada se passa, até que, de repente, percebem que algo se passa.

Um dos polícias do sistema (a Fed) mostra que é preciso agir, porque está preocupado. De um momento para o outro todos estão preocupados. Com a economia, com o consumo, com a aviação, com o preço do petróleo.

Outros atores começam a entrar em cena e um dos mais importantes neste enredo (Trump) acaba por fornecer uma cena-chave, uma medida (suspensão de voos) que os outros interpretam como pânico e começam a fugir, levando ao pior dia nas bolsas americanas desde 1987 e o pior de sempre na Europa.

Durante muitos anos, o eventual motivo para o fim do bull run e o começo do bear market foi tema de debate aceso. Poderia ser o abrandamento económico, a guerra comercial com a China ou um de vários fatores geopolíticos.

O absurdo ambiente de taxas de juro ultrabaixas fomentou esse ‘touro’, com os investidores sem grandes opções de ativos que dessem retorno.

Os bancos centrais, em nome da recuperação após a crise económica e financeira, e depois da sua sustentação, gastaram as balas todas que tinham, deixando o arsenal vazio para combater uma nova crise.

Em Washington, o inquilino da Casa Branca festejava como ninguém os recordes do Dow, do S&P e do Nasdaq. A ideia era chegar às eleições de novembro em máximos para ganhar a corrida.

Por definição, é impossível prever um black swan. Ninguém poderia advinhar o surto e a propagação do novo coronavírus. No entanto, o seu impacto no sistema financeiro está a ser exacerbado pela péssima atitude que esse mesmo sistema manteve durante anos.

Parece que todos os bancos centrais e investidores decidiram que tinham de tomar os remédios quando estavam de boa saúde, sem pensar no que iria acontecer se um problema grave aparecesse. E agora apareceu, literalmente para atacar a nossa saúde e a do sistema económico.

Os números da ‘razia’ nas bolsas e noutros ativos como o petróleo são claros. É muito difícil ver, pelo menos por ora, uma recuperação rápida. Antes pelo contrário, as quedas poderão mesmo aumentar antes dessa melhoria.

O novo coronavírus chegou de surpresa, mas veio mostrar que o touro das bolsas tinha mesmo de acabar os seus dias a fazer figura de urso.