A leitura da proposta de Orçamento deixa patente aquilo que é a marca da política orçamental deste Governo, desde 2015: um agigantamento dos poderes do ministro das Finanças no plano da execução orçamental e a redução quase à insignificância da Assembleia da República.
Desde logo, o Governo propõe-se renovar o preceito, que já vem do ano passado, que autoriza o ministro das Finanças a “proceder a alterações orçamentais resultantes de operações não previstas no orçamento inicial destinadas ao financiamento de medidas excecionais adotadas pela República Portuguesa decorrentes da situação da pandemia da doença Covid-19 entre os diversos programas orçamentais”, contrariando mais uma vez o disposto no artigo 105.º, n.º 4, da Constituição e na Lei de Enquadramento Orçamental. Prescinde, portanto, da intervenção financeira que é constitucionalmente esperada (e devida) por parte do Parlamento.
Se é verdade que, no exercício das suas competências de execução orçamental, o Governo pode proceder a algumas alterações orçamentais, a verdade é que não lhe compete a redefinição do plano financeiro traçado – como este preceito prevê -, uma vez que a competência para a sua aprovação é exclusivamente do Parlamento.
Na mesma linha vai o artigo 3.º desta proposta, que contém as regras das cativações e renova os poderes discricionários do ministro das Finanças, colocando à semelhança dos anos anteriores todos os serviços da Administração Pública na posição de terem de se justificar quanto ao cumprimento das suas atribuições e ao dispêndio de verbas orçamentadas pelo Parlamento. Na sua proposta, o Governo já dá esta centralização por tão adquirida, que nem se dá ao trabalho de determinar os termos da mesma, prevendo que o artigo 4.º do Orçamento de 2019 se mantém em vigor. Como, aliás, nem se deu ao trabalho de publicar o Decreto-Lei de execução orçamental em 2020 e 2021.
Este enorme poder de execução orçamental aumenta, sobretudo, tendo em conta a manutenção da opacidade dos mapas orçamentais que vem desde o ano passado, unicamente devida à inércia em concluir a reforma exigida pela Lei de Enquadramento Orçamental. Os mapas desta proposta acabam por remeter muita da informação que antes estava contida no Orçamento para os Desenvolvimentos Orçamentais, os quais não são objeto de votação ou controlo parlamentar, nem de publicação em Diário da República.
Este modo de legislar faz do Orçamento uma formalidade que deixa o Governo com mão livre para futuras alterações orçamentais, mais em linha com uma proposta de Orçamento do tempo do Estado Novo, do que com a prevista na atual Constituição.
O mais extraordinário nisto tudo não é o Governo pretender assumir este papel cimeiro em termos financeiros, já que a governamentalização do processo orçamental (e consequente subalternização do Parlamento) é uma consequência inevitável da assunção de uma política financeira interventiva na economia. O mais extraordinário é que a Assembleia possa passivamente aceitar este apagamento, sem qualquer protesto, numa altura de relançamento da economia e de definição de prioridades de atuação, parecendo esquecer o seu papel constitucional de único legítimo representante dos contribuintes e de soberano decisor do modo como o dinheiro destes é afetado às necessidades públicas.